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Tag Archives: Cecilia Meireles

O tempo seca a beleza — dois poemas de Cecília Meireles

20 Quinta-feira Fev 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Cecilia Meireles, Johann Georg Meyer

Johann Georg Meyer (German, 1813–1880). Sitting Girl (Reflecting), 1872 detalheO tempo, esse grande escultor, escreveu uma vez Marguerite Yourcenar: fórmula lapidar que dá conta de como o seu passar nos forma e transforma dia-a-dia.

Somos em cada momento o que o tempo, ou a vida, como se preferir, faz de nós.

Eu não tinha este rosto de hoje, escreve Cecília Meireles (1901-1964) a abrir o seu poema Retrato, e nele reflecte sobre a mudança em nós que o passar do tempo traz, tantas vezes sem que nos apercebamos delas até que súbito o espelho da verdade no-las impõe:

Eu não dei por esta mudança, / … / — Em que espelho ficou perdida / a minha face?

 

Retrato

 

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.

 

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.

 

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

— Em que espelho ficou perdida

a minha face?

Nas voltas da vida por vezes O tempo seca a beleza, belo verso com que Cecília Meireles abre o poema Canção do Amor-Perfeito. Ao lê-lo, na sua concisa e bela sinceridade fazemos o percurso do seu passar:

 

O tempo seca a saudade,/ … / Deixa algum retrato, apenas,

O tempo seca o desejo / e suas velhas batalhas.

 
Canção do Amor-Perfeito

 

O tempo seca a beleza,

seca o amor, seca as palavras.

Deixa tudo solto, leve,

desunido para sempre

como as areias nas águas.

 

O tempo seca a saudade,

seca as lembranças e as lágrimas.

Deixa algum retrato, apenas,

vagando seco e vazio

como estas conchas das praias.

 

O tempo seca o desejo

e suas velhas batalhas.

Seca o frágil arabesco,

vestígio do musgo humano,

na densa turfa mortuária.

 

Esperarei pelo tempo

com suas conquistas áridas.

Esperarei que te seque,

não na terra, Amor-Perfeito,

num tempo depois das almas.

 

Retrato pertence ao livro Viagem de 1939, e livro da sua consagração como poeta. Canção do Amor-Perfeito íntegra o livro Retrato Natural publicado em 1949.

Transcrevi a partir da edição portuguesa da Antologia Poética, escolha de Cecília Meireles em 1963 e publicada pela primeira vez a seguir à morte da poetisa.

 

O retrato da rapariga que reflete depois da leitura foi pintado pelo alemão Johann Georg Meyer (1813-1880).

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A Vaidade, pintura de Hans Memling com Mallarmé e Cecília Meireles pelo caminho

20 Terça-feira Ago 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Cecilia Meireles, Hans Memling, Stéphane Mallarmé

Memling - A vaidadeVá lá saber-se porque motivo esta graciosa rapariga nua a olhar-se ao espelho e pintada pelo flamengo Hans Memling (1430-1494) representa A Vaidade no dizer de especialistas.

Consultadas as autoridades que em livro escrevem e tenho em casa, pouco adianto.

A rapariga (modelo) faz de Virgem com o Menino em diversas pinturas do mestre e aqui mostra os seus argumentos.

Nada na sua atitude faz lembrar a rainha má da história a Branca de Neve: diz-me espelho meu, há alguma mais bela que eu? Pelo contrario, a menina parece até surpreendida com o que vê.

Pertence a pintura ao tríptico Da Vaidade Terrestre e da Redenção Celeste. Olhai!

Hans Memling - Tríptico Da vaidade Terrena e da redenção CelesteNão sei a quem cabe a responsabilidade do nome: se ao pintor, se a algum dos proprietários através dos séculos, ou se ao Museu de Belas Artes de Estrasburgo onde agora a pintura se guarda. Aparentemente representará a vaidade e a luxuria porque a rapariga se contempla, nua, ao espelho, sem vergonha ou restea de pudor. Ele há cada uma! Num tempo em que não havia revistas para homens, chamadas, nem net, os pretextos de que eles se serviam para olhar imagens de mulheres nuas!

A simbólica do espelho é rica em todas as culturas antigas, da Europa ao Japão, e até a ciência esclarecer a formação da imagem por reflexo, o sortilégio de se ver foi fonte de encantadoras crenças.

A poesia, que em tudo acompanha o mundo, também reflecte o que o espelho numa alma feminina escreve.

É um fragmento do poemeto Hérodiade, de Stéphane Mallarmé (1842-1898) que escolho para disso dar conta.

…

O miroir !

                   Eau froide par l’ennui dans ton cadre gelée

Que de fois et pendant des heures, désolée

Des songes et cherchant mes souvenirs qui sont

Comme des feuilles sous ta glace au trou profond,

Je m’apparus en toi comme une ombre lointaine,

Mais, horreur ! des soirs, dans ta sévère fontaine,

J’ai de mon rêve épars connu la nudité !

…

Deixo a tradução directa dos versos apesar de a perda inevitável da rima lhes retirar toda a música  original. E era Mallarmé quem defendia: “A poesia é uma música que se faz com ideias, e por isso com palavras“.

…

Ó espelho!

              Água fria pelo tédio na tua moldura gelada

Quantas vezes e durante horas, desolada

Dos sonhos e procurando as minhas recordações que são

Como folhas sob o teu vidro em poço profundo.

Apareci-me em ti como sombra longínqua

Mas, horror! certas noites, na tua severa fonte.

No meu sonho disperso conheci a nudez!

…

No detalhe do poema de Cecília Meireles (1901-1964) com que encerro esta divagação, encontramos uma mulher reflectindo sobre si e o mundo ao olhar a imagem que o espelho lhe devolve. Saberão as mulheres que me lêem quanto de verdade hoje ainda existe nesta imagem de mulher em meados do século XX.

Mulher ao espelho

Hoje, que seja esta ou aquela,

pouco me importa.

Quero apenas parecer bela,

pois, seja qual for, estou morta.

 

Já fui loura, já fui morena,

já fui Margarida e Beatriz.

Já fui Maria e Madalena.

Só não pude ser como quis.

 

Que mal faz, esta cor fingida

do meu cabelo, e do meu rosto,

se tudo é tinta: o mundo, a vida,

o contentamento, o desgosto?

 

Por fora, serei como queira

a moda, que me vai matando.

Que me levem pele e caveira

ao nada, não me importa quando.

 

Mas quem viu, tão dilacerados,

olhos, braços e sonhos seus

e morreu pelos seus pecados,

falará com Deus.

 

Falará, coberta de luzes,

do alto penteado ao rubro artelho.

Porque uns expiram sobre cruzes,

outros buscando-se no espelho.

Publicado pela primeira vez em Mar Absoluto e outros poemas, em 1945.

 

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A Primavera anuncia-se em Lisboa e um soneto de Cecília Meireles

02 Quarta-feira Mar 2011

Posted by viciodapoesia in Convite à música, Poetas e Poemas

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Cecilia Meireles, Frühlingsstimmen, Herbert von Karajan, Johann Strauss, Katleen Battle, Vozes da Primaver

Pondo fim ao tempo em que  A chuva chove mansamente … como um sono , a primavera anuncia-se subitamente em Lisboa, e as árvores explodem em flor.

Evoco o soneto de Cecília Meireles (1901 – 1964) a contrario, ou seja, para deixar para trás tudo o que ele convoca.

A chuva chove mansamente … como um sono

que tranquilize, pacifique, resserene…

A chuva chove mansamente… Que abandono!

A chuva é a musica de um poema de Verlaine…

 

E vem-me o sonho de uma véspera solene,

em certo paço, já sem data e já sem dono…

Véspera triste como a noite, que envenene

a alma, evocando coisas líricas de outono…

 

num velho paço, muito longe, em terra estranha,

com muita névoa pelos ombros da montanha…

paço de imensos corredores espectrais,

 

onde murmurem velhos órgãos árias mortas,

enquanto o vento, estrepitando pelas portas,

revira in-fólios, cancioneiros e missais…

 

Soneto imbuído de atmosfera musical, é outra a musica que quero lembrar, e não

… o sonho de uma véspera solene/ … / Véspera triste como a noite, que envenene / a alma…/ …/ velho paço…/ … / onde murmurem velhos orgãos árias mortas, / enquanto o vento, estrepitando pelas portas, / revira in-fólios, cancioneiros e missais…

Ouçamos, pois, a atmosfera festiva de Vozes da Primavera para estrear uma nova forma de ouvir musica no blog.

Frühlingsstimmen op. 410 (Vozes da Primavera), valsa de Johann Strauss (1825 – 1899) tocada pela Orquestra Filarmónica de Viena no Concerto de Ano Novo de 1987.

Dirige a orquestra Herbert von Karajan e a parte solista é cantada por Katleen Battle, Soprano, que na altura surgiu esplendorosa, em vermelho, entre as flores que decoravam o palco.

https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/viciodapoesiamedia/Karajan+(1987)+-+Johann+Strauss-+Fr%C3%BChlingsstimmen+op.+410.mp3

Para Solombra (1963), último livro publicado em vida da poetisa, fez Julio Pomar 4 ilustrações magníficas, a evidenciar o corta estético do pintor com o neo-realismo.

Pode, seguindo este link, saber mais sobre Cecília Meireles

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