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Haring_Keith- Apocalypse 3 500pxAmei a vida

Como se fora um castigo

 

Cantei-a

Como se fora um feitiço

 

 

Intensa meditação sobre a morte em diálogo com Deus, da leitura da obra poética de Daniel Faria (1971-1999) saímos com uma estranha sensação onde a serenidade se enlaça à branda aceitação do destino.

Transcrevo alguns poemas.

 

 

*

Mas tu existes.

Os dias somam ruína à ruína

E o a vir multiplicará

A miséria.

Apodreço não adubando a terra

E cada dia somado a cada hora

Não completa o tempo.

Sei que existes e multiplicarás

A tua falta.

Somarei a tua ausência à minha escuta

E tu redobrarás a minha vida.

 

 

**

Agora és um animal que pensa

Amanhã um animal que dorme

Mas tens uma noite inteira para dormires do mesmo lado

 

Hoje és um dia que começa outra vez

Como se hoje pudesses plantar o dia que não acaba

Um animal que come a sombra diurna daquilo que é pensado

 

És um alimento

Agora és um alimento que dorme

Do mesmo lado da mão direita de quem colhe

 

Como se hoje pudesses plantar-te no que frutifica

E igualares-te no silêncio a uma pedra fechada

Uma pedra em sua natureza humilde de coisa que vive

Em seu mistério de coisa que sem sementes se propaga

 

Agora és um animal que se propaga no sono

Que pesa menos do que o sonho ou um pássaro

Um animal que se eleva em seu instinto de máquina

 

És agora uma máquina montada para a morte

Uma avaria dentro dela que lentamente desgasta.

E fabricas um homem que se afasta

 

Do mundo

 

 

Ezequiel  (Ez12, 1-20)

 

Arruma as tuas alegrias

E faz as malas como se fosses emigrante

 

Leva contigo todas as coisas

E parte de dia como se fosses emigrante

Para que possas levar também a luz

 

Abre a cal. O flanco do muro

Porque vais como emigrante e precisas

De regressar

 

Na parede faz uma abertura

Para que os que passam vejam o teu rosto

E não digam: vai beber ao poço

Vai visitar um parente no estrangeiro

Ninguém chora por razões assim

 

Parte de tarde, dobrando a luz

Cobrindo o rosto de cinza e sombra

Porque és um povo que abandona a tua casa

E nos teus passos eu arraso o teu país

 

 

Cigarra

 

Amei a vida

Como se fora um castigo

 

Cantei-a

Como se fora um feitiço

 

Agora chora

Esse canto calado

Sacie-te a voz

Agasalhe-te o pranto

 

Que fizeste no Verão?

Vendeste o teu canto?

 

Não vendi

Dei-o às aves

A qualquer viandante

 

Oh leva-me flores

Quando já o meu corpo

Caído não cante

 

Poemas transcritos de Daniel Faria, Poesia, Edição de Vera Vouga, Edições quasi, 2003.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Keith Haring (1958-1990), Apocalipse 3.