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Everdingen_Caesar_van-Nymphs_Offering_the_Young_Bacchus_Wine_Fruit_and_FlowersConhecem-se como Anacreônticas um conjunto de 60 poesias em grego, escritas ao tempo do Império Romano, em época tardia, em imitação dos temas e efeitos estilísticos do poeta grego Anacreonte (séc. VI a.C.). Durante séculos estes poemas foram atribuídos a Anacreonte.

Segundo os estudiosos da obra, e a julgar pelas características estilísticas, métricas e prosódicas dos poemas, estes terão sido escritos entre os séculos II e IV d.C.

As Anacreônticas têm sido, provavelmente, o texto grego de maior êxito logo após os poemas épicos de Homero, pois as edições sucederam-se de forma continuada nas línguas europeias, desde a sua primeira publicação moderna em 1554.

Não assim em Portugal. Tenho noticia de uma versão de Francisco da Silveira Malhão (1757-1809), As Odes de Anacreonte Parafraseadas, publicada em 1804, o qual, desconhecedor do grego, escreveu agradáveis versos a partir da versão francesa que conheceria; e a tradução a partir do grego, também por via da versão francesa, de António Feliciano de Castilho (1800-75), A Lyrica de Anacreonte.

Trago ao blog noticia desta deliciosa colecção com o poema XXXIII em tradução de Castilho, onde uma discreta malícia espreita, contada num fluir de saborosa leveza.

A noite passada

à hora em que a Ursa,

mais perto discursa

da mão do Boieiro,

e o sono profundo

no grémio fagueiro

por todo esse mundo

restaura os mortais,

em meio era a noite;

o exemplo dos mais

no leito eu seguia;

sereno dormia…

À porta imprevisto

Cupido me bate!

À pressa me visto;

redobra o rebate;

acudo a correr.

“Sou eu — diz de fora —

não tens que temer;

sou um pequenino

que vaga, a tal hora,

molhado e sem tino,

perdido no escuro,

pois lua não há!”

Ouvi-lo gemendo

de mágoa me corta;

a lâmpada acendo,

franqueio-lhe a porta…

em casa me está!

Descubro (em verdade

mentido não tinha)

gentil criancinha

com arco e carcaz.

Remexo nas brasas

da minha lareira;

restauro a fogueira;

as mãos, que são gelo,

lhe aqueço nas minhas,

lhe espremo o cabelo,

lhe enxugo as azinhas;

já frio não faz.

— “Vejamos se a chuva

(dizia e sorria)

a corda do arco

me não danaria!”

Levanta-o do chão;

recurva-o, dispara

no meu coração.

A frecha que o vara

parece um tavão.

Eu, dores danadas,

e o doudo às risadas

de gosto a pular!

— “Meu caro hospedeiro,

(me diz prazenteiro)

agora é folgar.

Permite me ausente;

meu arco está são…

Quem fica doente

é teu coração!”

Termino com uma das paráfrases de Francisco da Silveira Malhão.

As moças louçãs me dizem:

—”Anacreonte estás velho,

vê as cãs, consulta as rugas,

perante um fiel espelho.”

Que vale que esteja calvo

ou tenha a fronte rugosa,

s’inda sinto as mesmas forças

duma idade vigorosa!

Por isso mesmo, que perto

vejo o prazo à minha vida,

e sempre a levei contente,

tenha o seu fim divertida.

Noticia bibliográfica

António Feliciano de Castilho traduziu as Anacreônticas como se de obras de Anacreonte se tratassem, e como durante séculos foi convicção aceite. Hoje está definitivamente estabelecido que se trata de um conjunto de poemas escritos sete ou oito séculos mais tarde, tomando o prestigio da obra do poeta como modelo.

Não existindo em português, de meu conhecimento, uma edição actual anotada, remeto o leitor curioso de considerações eruditas e da versão grega hoje aceite, para uma tradução directa grego/castelhano, com notas abundantes sobre as opções de tradução: Anacreônticas, edição de Luís Arturo Guichard, Ediciones Cátedra, Madrid, 2012. Nesta edição os poemas aqui transcrito trazem respectivamente os números XXXIII e VII. Na tradução de António Feliciano de Castilho, A Lyrica de Anacreonte, Paris, 1886, o poema é o nº3. Na versão de Francisco da Silveira Malhão, As Odes de Anacreonte de Teos parafraseadas, o poema é a Ode XI.

Dos sessenta poemas que compõem actualmente a colecção, Castilho traduziu 53, Malhão 55.

Em ambos os poemas modernizei a ortografia e uniformizei a pontuação.