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Regressado de férias, com a vida a procurar equilibrar-se no escorregadio deste nosso quotidiano, às vezes a sugestão oferecida por Isabel Meyrelles (1929) em O Complexo do Armário ganha apetitosas cores. Partilho-a com quem a não conheça.
O Complexo do Armário
Se é infeliz,
insone, angustiado,
cardíaco, dipsomaníaco,
melancólico
ou hipocondríaco,
se anda deprimido
pelo tempo morto dos sonhos
e se acredita
que um na mão
vale mais
que dois a voar,
faça como eu:
arranje um armário.
O meu tem protecção
contra o nevoeiro, as traças,
a amnésia.
possui o tudo-é-d’esgo(s)to,
ar condicional
e muros acolchoados
para cabeças sensíveis.
Previ também
uns ganchos no tecto
para o excedente dos bolsos:
óculos, amores mortos,
sapatos velhos,
casa dos antepassados
e várias outras coisas
de que não direi o nome.
Para as horas de ócio,
escolhi um pedaço de mar,
a biblioteca de Babel,
a praça St. Germain des Prés
às 5 da manhã
e uma florestado Plistoceno
com inúmeros mamutes
e macairódus,
sem esquecer o fundo sonoro ad hoc,
rugidos, uivos
e barridos extremamente típicos.
Muito repousante.
Experimente
e depois diga se gostou.
Lido este convite a desligar de tudo e encontrar o casulo ou armário onde guardar o que a vida nos deixou, na espera de que o ócio de prazer ainda seja possível, me despeço.
Noticia bibliográfica
O poema foi originalmente escrito em francês e publicado em Le Livre du Tigre em 1977.
A tradução portuguesa é da autora e a transcrição provém de POESIA, Quasi Edições, 2004.
Este livro, POESIA, reúne a poesia da autora, e contém a abrir um pequeno estudo de Perfecto E. Cuadrado, onde este enquadra, na biografia da artista, a obra escultórica e poética, filha do surrealismo.