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É a um exercício de reflexão sobre os limites e resultados da tradução de poesia que convido o leitor que simultaneamente leia fluentemente francês.

São três as leituras em português que transcrevo de um famoso soneto de Paul Verlaine (1844-1896), Nevermore.

As opções dos tradutores dividem-se entre a fidelidade verbal ao texto e a captação da ideia numa reconstrução em português.
A polémica é antiga e permanece. Qual delas é a opção legítima? Por mim, apenas o talento poético do tradutor permite criar na nossa língua um poema que pareça ter-lhe sempre pertencido, o que, com rara felicidade, acontece nestas três traduções, embora a tradução de charmant por vibrante, no penúltimo verso, feita por Fernando Pinto do Amaral me pareça discutível.

Outras traduções são ainda possíveis para a infinita nostalgia que se desprende deste Ah!

– Ah ! les premières fleurs, qu’elles sont parfumées !
Et qu’il bruit avec un murmure charmant
Le premier oui qui sort de lèvres bien-aimées !

Vamos então às traduções. O original encontra-se integralmente no final do artigo.

Nevermore

Doces recordações, que me quereis? O Outono
Fazia o tordo voar num lânguido ar de sono
E, monótono, o Sol lançava do seu trono
Ao bosque desmaiado uma luz de abandono.

Íamos sós os dois, sonhando, o pensamento
E o cabelo a esvoaçar na quimera do vento.
E eis que ela, olhos em mim, num enternecimento,
“Qual foi na vida”, disse,”o teu melhor momento?”

Trinava a doce voz, em vibrações amenas;
Um sorriso discreto eu lhe volvi apenas
E a sua mão beijei, devotamente.

— Ah! as primeiras flor’s, como são perfumadas!
E como se ouve soar, que murmúrio atraente
Tem o primeiro sim nas bocas bem-amadas!

Tradução de Pedro da Silveira

E agora a versão de Herculano de Carvalho

Nevermore

Reviver, reviver, que me queres tu? O Outono
Fazia o tordo abrir as asas pelo céu morno
E, monótono, o Sol lançava um raio em torno
Do bosque amarelando, à brisa, em abandono.

Os dois íamos sós e num sonho absorvente,
Eu e ela, o cabelo e o pensamento ao vento.
De súbito, voltando o olhar de encantamento:
“Qual teu dia melhor?” disse a voz de oiro quente.

A voz doce e sonora, em fresco timbre, angélica,
Um sorriso discreto à pergunta deu réplica,
E beijei sua mão branca devotamente.

— Aí! as primeiras flores e os botões perfumados!
E como soa num murmúrio comovente
O “sim” primeiro, ao vir de lábios bem-amados.

Termino com a versão de Fernando Pinto do Amaral

Nevermore

Ah, lembrança, lembrança, que me queres? O Outono
Fazia voar os tordos plo ar desmaiado
E o sol dardejava um monótono raio
No bosque amarelado onde a nortada ecoa.

A sonhar caminhávamos os dois, a sós,
Ela e eu, pensamento e cabelos ao vento.
De repente, fitou-me em olhar comovente:
“Qual foi o teu mais belo dia?” disse a voz

De oiro vivo, sonora, em fresco timbre angélico.
Um sorriso discreto deu-lhe a minha réplica
E então, como um devoto, beijei-lhe a mão branca.

— Ah! as primeiras flores, como são perfumadas!
E como em nós ressoa o murmúrio vibrante
Desse primeiro sim dos lábios bem-amados!

Nevermore

Souvenir, souvenir, que me veux-tu ? L’automne
Faisait voler la grive à travers l’air atone,
Et le soleil dardait un rayon monotone
Sur le bois jaunissant où la bise détone.

Nous étions seul à seule et marchions en rêvant,
Elle et moi, les cheveux et la pensée au vent.
Soudain, tournant vers moi son regard émouvant
” Quel fut ton plus beau jour? ” fit sa voix d’or vivant,

Sa voix douce et sonore, au frais timbre angélique.
Un sourire discret lui donna la réplique,
Et je baisai sa main blanche, dévotement.

– Ah ! les premières fleurs, qu’elles sont parfumées !
Et qu’il bruit avec un murmure charmant
Le premier oui qui sort de lèvres bien-aimées !