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À volta da cor dos olhos com um poema de Almeida Garrett

20 Quarta-feira Set 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Almeida Garrett, Janos Balazs, Júlio Diniz

A relação entre olhos, olhar, e poesia, é uma constante na tradição poética portuguesa pelo menos desde Bernardim Ribeiro, e até aos nossos dias, com, por exemplo, a poesia de Sophia de Melo Breyer Andersen.
Ainda que na poesia de Sophia “a cor dos olhos e a argúcia do olhar” marque presença densa, com a, por vezes, implícita assumpção de que os olhos são espelho da alma, é a uma mais ligeira percepção que hoje me dedico: a arreigada crença de que a cor dos olhos dita disposições de carácter.

Recordo eu, de quando era miúdo, uma canção ainda popular à época, Olhos Castanhos, suponho que inicialmente sucesso no Brasil, cantada por Francisco José, que punha os olhos em alvo às miúdas com olhos dessa cor,
…
Olhos bons com coração
Os teus, castanhos leais.
…

e enfurecia a mais ver as belas possuidoras de olhos verdes e azuis, pois a canção rezava assim:
…
Olhos azuis são ciúme
E nada valem pra mim
…
Olhos verdes são traição
São cruéis como punhais
…

Os olhos negros, encanto ocasional para Almeida Garrett, como veremos mais à frente (e escrevo ocasional pois ao que consta o homem ter-se-á encantado com olhos em todas as cores do arco-iris), eram verdadeiramente vilipendiados na canção:
…
Olhos negros são queixume
D’uma tristeza sem fim.

(Quem quer a vida acompanhada de uns olhos queixosos?)

Acontece que os termos em que a canção encomiava os olhos castanhos casavam à maravilha com o que diziam umas quadras que no princípio do romance As Pupilas do Sr. Reitor, Daniel, miúdo de doze para treze anos, cantava em toada popular a Margarida, rapariga da sua idade. E como o livro era leitura adequada à juventude, tudo isto contribuía para o desenvolvimento das mais variadas fantasias entre cor dos olhos e disposições inatas de modos de ser, levando a arrufos e alegrias de incipientes namoros.
São no entanto, estas fantasias e por vezes equívocos, extensíveis a épocas mais recuadas, e nem sei se ainda hoje fazem caminho. Talvez haja poetas a quem os olhos azuis ou verdes encheram de encanto e louvaram em poesia; o que de momento desconheço. Mas veremos o que diz de uns Olhos Negros Almeida Garrett (1799-1854):

…
Só negros, negros os quero;
Que, em lhes chegando a paixão,
Se um dia disserem sim…
Nunca mais dizem que não.

Ao contrário, o nosso Daniel do romance de Júlio Dinis não cuidava de fidelidades mas tão só de sedução:

Morena, morena,
Dos olhos castanhos,
Quem te deu, morena,
Encantos tamanhos?
…
São os meus pecados
Uns olhos assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.
…

E assim andamos à volta do olhar tentando espreitar a alma.
Termino com o poema de Almeida Garrett:

Olhos Negros

Por teus olhos negros, negros
Trago eu negro o coração,
De tanto pedir-lhe amores…
E eles a dizer que não

E mais não quero outros olhos,
Negros, negros como são
Que os azuis dão muita esp’rança
Mas fiar-me eu neles, não.

Só negros, negros os quero;
Que, em lhes chegando a paixão,
Se um dia disserem sim…
Nunca mais dizem que não.
I84…

in Flores sem Fruto

Em nota final, e para quem não o recorde, aqui ficam os olhos castanhos cantados a Margarida por Daniel no romance As Pupilas do Sr. Reitor de Júlio Dinis:

Morena, morena,
Dos olhos castanhos,
Quem te deu, morena,
Encantos tamanhos?

Encantos tamanhos
Não vi nunca assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.

Morena, morena,
Dos olhos rasgados,
Teus olhos, morena,
São os meus pecados.

São os meus pecados
Uns olhos assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.

Morena, morena
dos olhos galantes,
Teus olhos, morena.
São dous diamantes.

São dous diamantes
olhando-me assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.

Morena, morena.
Dos o!hos morenos,
o olhar desses olhos
Concede-me ao menos.

Concede-me ao menos
não sejas assim.
Morena, morena.
Tem pena de mim.

 

Apêndice musical

Completo esta ligeira digressão com as letras de duas canções: Olhos Castanhos e Olhos Negros (Ochi cherniye).
Primeiro a canção famosa em Portugal na voz de Francisco José entre outros; finalmente os olhos negros de uma famosa canção russa: Ochi cherniye.

Olhos Castanhos

Teus olhos castanhos de encantos tamanhos
São pecados meus
São estrelas fulgentes, brilhantes, luzentes
Caídas dos céus
Teus olhos risonhos, são mundos, são sonhos
São a minha cruz
Teus olhos castanhos de encantos tamanhos
São raios de luz.

Olhos azuis são ciúme
E nada valem pra mim
Olhos negros são queixume
D’uma tristeza sem fim.

Olhos verdes são traição
São cruéis como punhais
Olhos bons com coração
Os teus, castanhos leais.

Teus olhos castanhos …

Letra de Alves Coelho

Agora Ochi cherniye. E aqui, estes olhos negros são também belos, só que da sua constância nada sabemos.

Ochi cherniye

Olhos negros, olhos apaixonados
Olhos ardentes e belos
Como eu os amo, como eu os temo
Sabe, eu vos vi em má hora

Oh, não é à toa que vocês são mais escuros que as trevas!
Vejo um lamento em vós, pela minha alma
Vejo em vós uma chama vitoriosa:
Queimando nela, um pobre coração.

Mas eu não estou triste, não estou desolado,
O meu destino me conforta:
Tudo o que de melhor na vida Deus nos deu,
Num sacrifício eu entreguei aos olhos ardentes!

Tradução encontrada na net assinada por Érika Batista.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do húngaro Janos Balazs (1905-1977) – Mulher cigana.

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Pele escura e poesia portuguesa – uma digressão

30 Domingo Jan 2011

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Camões, Guerra Junqueiro, Júlio Diniz, Soror Maria do Céu

 

Suponho que as morenas hoje dispensam o encorajamento dos poetas do dia.


Não foi sempre assim.

Num tempo em que os padrões de beleza eram os a seguir figurados,

 

qualquer morena, por mais bela que fosse, acabava por se sentir na pele deste modelo.

 

Poetas condoidos, ou apreciando a beleza sem preconceito, louvaram a pele trigueira de morenas belas.

Desde logo Camões, na que há muito é considerada entre as melhores poesias portuguesas de sempre, canta em Endexas a uma cativa chamada Bárbara, os encantos, cuja Pretidão de amor[*], / Tão doce a figura, / que a neve lhe jura / que trocara a cor.

[*] Este verso tem feito correr rios de tinta com comentadores ao logo dos séculos indignados e a pretender demonstrar que a pretidão é apenas do cabelo. Outros concedem que Bárbara possa ser, talvez, morena.

Embora de longa data a brancura da pele tenha sido, nas sociedades de matriz católica, distintivo de classe e apanágio de beleza, já no virar do sec. XVII para o XVIII encontramos um poema que dá conta de uma realidade social onde a cor da pele determina o destino. Trata-se de um poema de Soror Maria do Céu (1658 – 1753) que, em A pérola e a pimenta, retrata o destino de duas donzelas, uma branca e uma preta, provavelmente meio-irmãs, filhas do mesmo pai como parece intuir-se do final do poema, em que a branca ficou por dama / a negra por cozinheira.


A PÉROLA E A PIMENTA

Companheira de jornada,

Duas donzelas havia,

Uma formosa e fria,

Outra feia e engraçada.

Uma tão negra se of’rece,

Que até carapinha tem,

A outra tão clara vem

Que filha da alva parce.

E olhando com desafogo

Nos efeitos que produz,

Uma tem cara de luz,

A outra entranhas de fogos.

Já acabada a carreira,

Ali onde a sorte as chama,

A branca ficou por dama,

A negra por cozinheira.

Uma e outra foi notada

Nesta jornada ou empresa,

Porque a dama ficou presa,

E a negra escalavrada.

Todos sabemos quem são

E as conhecemos bem,

Ainda que uma só tem

Árvore de geração.

E da outra não duvido

Venhais em conhecimento,

Porque é o seu nascimento

Claro, posto que escondido.

 

 

Avançando no tempo, é na segunda metade do século XIX que escolho dois poemas com a particularidade de terem sido seleccionados, por antologiadores de mérito, como representativos da poesia dos seus autores e se situarem entre os melhores da poesia portuguesa de sempre.

No primeiro, TRIGUEIRA,  Júlio Diniz (1839 – 1877) desdobra-se em argumentos de consolo:  Mais feia / Com essa cor te imaginas? / … / Pois serias tu mais linda, / Se tivesses outra cor?

ou ainda:

Tu, que assim fascinas / Com um só olhar dos teus!

…

Invejar a cor da rosa, / Em ti, é quase pecar.

…

Trigueira! Onde mais realça / O brilhar duns olhos pretos, / … / Do que numa cor assim?

 

Vamos então ao poema:

 

TRIGUEIRA

Trigueira! Que tem? Mais feia

Com essa cor te imaginas?

Feia! Tu, que assim fascinas

Com um só olhar dos teus!

Que ciumes tens da alvura

D’esses semblantes de neve!

Ai, pobre cabeça leva!

Que te não castigue Deus.


Trigueira! Se tu soubesses

O que é ser assim trigueira!

D’essa ardilosa maneira

Por que tu o sabes ser;

Não virias lamentar-te,

Toda sentida e chorosa,

Tendo inveja à cor da rosa,

Sem motivos para a ter.


Triguieira! Porque és trigueira

É que eu assim te quis tanto,

Daí provem todo o encanto

Em que me traz este amor.

E suspiras e murmuras!

Que mais desejavas inda?

Pois serias tu mais linda,

Se tivesses outra cor?


Trigueira! Onde mais realça

O brilhar duns olhos pretos,

Sempre húmidos, sempre inquietos,

Do que numa cor assim?

Onde o correr duma lágrima

Mais encantos apresenta?

E um sorriso, um só, nos tenta,

Como me tentou a mim?


Trigueira! E choras por isso!

Choras, quando outras te invejam

Essa cor, e em vão forcejam

Por, como tu, fascinar?

Ó louca, nunca mais digas,

Nunca mais, que és desditosa,

Invejar a cor da rosa,

Em ti, é quase pecar.


Trigueira! Vamos, esconde-me

Esse choro de criança.

Ai, que falta de confiança!

Que graciosa timidez!

Enxuga os bonitos olhos,

Então, não chores, trigueira,

E nunca dessa maneira

Te lamentes outra vez.

 

Este poema, cuja popularidade, hoje, desconheço, figurou entre as 100 Melhores Poesias (Líricas) da Língua Portuguesa, escolhidas por Carolina Michaelis de Vasconcellos em 1910. À poesia de Júlio Diniz hoje desaparecida das livrarias (suponho), regressarei por estes dias.

Entre estas 100 poesias figura, obviamente, Endexas a uma cativa chamada Bárbara de Camões.

 

O segundo poema sobre a cor da pele, MORENA, é de Guerra Junqueiro (1850 – 1923).

Aqui o tom é outro, brincalhão, e a morena a quem se dirige o poema é ainda alvo de atenções prévias do poeta

… / Pois pouco te importa / Que eu goste ou que não.

e não o consolo que Júlio Diniz escreveu.

Ao longo do poema desenvolvem-se comparações com flores … / Há rosas dobradas / E há-as singelas; / … / Mas rosas morenas, / Só tu, linda flor.

 

E de elogio em elogio termina no mais convincente(?):

E a Virgem Maria / Não sei… mas seria / Morena também.

…

Vê lá depois disto / Se ainda tens pena / Que as mais raparigas / Te chamem morena!

 

Finalmente o poema:

 

MORENA

Não negues, confessa

Que tens certa pena

Que as mais raparigas

Te chamem morena.


Pois eu não gostava,

Parece-me a mim,

De ver o teu rosto

Da cor do jasmim.


Eu não… mas enfim

É fraca a razão,

Pois pouco te importa

Que eu goste ou que não.


Mas olha as violetas

Que, sendo umas pretas,

O cheiro que têm!

Vê lá que seria,

Se Deus as fizesse

Morenas também!


Tu és a mais rara

De todas as rosas;

E as coisas mais raras

São mais preciosas.


Há rosas dobradas

E há-as singelas;

Mas são todas elas

Azuis, amarelas,


De cor de açucenas,

De muita outra cor;

Mas rosas morenas,

Só tu, linda flor.


E olha que foram

Morenas e bem

As moças mais lindas

De Jerusalém.

E a Virgem Maria

Não sei… mas seria

Morena também.


Moreno era Cristo,

Vê lá depois disto

Se ainda tens pena

Que as mais raparigas

Te chamem morena!

 

Sendo um poema conhecido na sua época, foi escolhido como representativo do estro de Guerra Junqueiro por Cabral do Nascimento para a antologia COLECTÂNEA DE VERSOS PORTUGUESES  do século XII ao século XX, publicada em 1964, onde figurava apenas um poema por poeta.

Nesta antologia permaneceu a representar a obra camoneana  Endexas a uma cativa chamada Bárbara, mas desapareceu qualquer poema de Júlio Diniz.

Nas voltas da moda ou da sensibilidade de cada época se fazem génios hoje, esquecidos amanhã.

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