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Esconde-se no relato do trivial que o quotidiano contém, e constitui a substância aparente da poesia de Adélia Prado (1935), uma sabedoria dos seres e da vida que em cada poema, numa volta da história contada, salta para uma compreensão profunda do que é existir.
Poesia que de morte e vida se constrói, e do sentimento de o viver, em seres humanos crentes de Deus e do inexplicável mistério que o mundo consigo carrega.
Mais que interrogar-se, cada poema constata perspectivas diversas do mosaico humano que no mundo passa, e a quem lê transmite uma como que verdade essencial.
Alguns fragmentos um pouco ao acaso:
No erotismo contido do poema Bairro:
…
com aquela cara de invencível fraqueza
para os pecados capitais.
…
Na memória da mulher que uma vez o foi no poema O Vestido:
…
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
…
Na morte de quem amamos em As mortes sucessivas:
…
Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
…
Na identificação de pertença ao mundo que nos coube no poema Linhagem:
…
Todos extremamente pecadores, arrependidos
até à pública confissão de seus pecados
que um deles pronunciou como se fosse todos:
‘Todo homem erra. Não adianta dizer eu
porque eu. Todo homem erra.
Quem não errou vai errar.’
…
Numa espécie de oração popular de aflição em Responsório:
Santo António
procurai para mim a carteira perdida,
vós que estais desafadigado,
gozando junto de Deus a recompensa dos justos.
Estão nela a paga do meu trabalho por um mês,
documentos e um retrato
onde apareço cansada, com uma cara
que ninguém olhará mais de uma vez
…
Poderia continuar por aí fora. Deixo-vos os poemas citados.
O rapaz acabou de almoçar
e palita os dentes na coberta.
O passarinho recisca e joga no cabelo do moço
excrementos e casca de alpiste.
Eu acho feio palitar os dentes,
o rapaz só tem escola primária
e fala errado que arranha.
Mas tem um quadril de homem tão sedutor
que eu fico amando ele perdidamente.
Rapazes desses
gostam muito de comer ligeiro:
bife com arroz, rodela de tomate,
e ir ao cinema
com aquela cara de invencível fraqueza
para os pecados capitais.
Me põe tão íntima, simples,
tão à flor da pele o amor,
o samba-canção,
o facto de que vamos morrer
e como é bom a geladeira,
o crucifixo que mamãe lhe deu,
o cordão de ouro sobre o frágil peito
Ele esgravata os dentes com o palito,
esgravata é meu coração de cadela.
in O coração disparado, 1978
O Vestido
No armário do meu quarto escondo de tempo e traça
meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas
à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, e volatiliza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.
in Bagagem, 1976
As mortes sucessivas
Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu, me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua,
cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
‘deixa, tá bom assim’.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória.
in Bagagem, 1976
Linhagem
Minha árvore genealógica
me transmitiu fidalguias,
gestos memoráveis:
meu pai, no dia do seu próprio casamento,
largou minha mãe sozinha e foi pro baile.
Minha mãe tinha um vestido só, mas
que porte, que pernas, que meias de seda mereceu!
Meu avô paterno negociava com tomates verdes,
não deu certo. Derrubou mato pra fazer carvão,
até ao fim da vida, os poros pretos de cinza:
‘Não me enterrem na Jaguara. Na Jaguara, não.’
Meu avô materno teve um pequeno armazém,
uma pedra no rim,
sentiu cólica e frio em demasia,
no cofre de pau guardava queijo e moedas.
Jamais pensaram em escrever um livro.
Todos extremamente pecadores, arrependidos
até à pública confissão de seus pecados
que um deles pronunciou como se fosse todos:
‘Todo homem erra. Não adianta dizer eu
porque eu. Todo homem erra.
Quem não errou vai errar.’
Esta sentença não lapidar, porque eivada
dos soluços próprios da hora em que foi chorada,
permaneceu inédita, até eu,
cuja mãe e avós morreram cedo,
de parto, sem discursar,
a transmitisse a meus futuros,
enormemente admirada
de uma dor razão alta,
de uma dor dão funda,
de uma dor tão bela,
entre tomates verdes e carvão,
bolor de queijo e cólica.
in O coração disparado, 1978
Responsório
Santo António
procurai para mim a carteira perdida,
vós que estais desafadigado,
gozando junto de Deus a recompensa dos justos.
Estão nela a paga do meu trabalho por um mês,
documentos e um retrato
onde apareço cansada, com uma cara
que ninguém olhará mais de uma vez
a não ser vós, que já em vida
vos apiedáveis dos tormentos humanos:
sumiu a agulha da bordadeira,
sumiu o namorado,
o navio no alto-mar,
sumiu o dinheiro no ar.
Tenho que comprar coisas, pagar contas,
dívidas de existir neste planeta convulso.
Prometo-vos uma vela de cera,
um terço do meu salário
e outro que rezarei
pra entoar vossos louvores, ó Martelo dos Hereges,
cuja língua restou fresca
entre vossos ossos intacta.
Servo do Senhor, procurai para mim a carteira perdida
e, se tal aprouver a Deus para a salvação da minha alma,
procurai antes me ensinar
a viver como vós,
como um pobre de Deus,
Amen!
in O Pelicano, 1987
Termino com uma peculiar visão de como Deus é a medida de tudo:
Parâmetro
Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto, sim, é consolo
in A faca no peito, 1988
Acompanham o artigo imagens de pintura de Rufino Tamayo (1899-1991).