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Um erotismo diáfano, eivado de pudor, banha o poema de Vicente de Carvalho (1866-1924), Adormecida, que no final transcrevo.
O poeta, brasileiro, virtualmente esquecido hoje em Portugal, integra o pequeno grupo de poetas parnasianos cuja obra continua a ser lembrada no Brasil.
Do poeta e da sua obra diz Jacinto do Prado Coelho no seu Dicionário de Literatura: Fiel a um ideal estético de equilíbrio e limpidez, V. de C. é ainda parnasiano pela escolha de temas objectivos, um deles épico… .
No entanto, este poema da mocidade foge à imagem parnasiana do poeta, difundida a partir do livro Poemas e Canções publicado em 1908, tinha o poeta mais de 40 anos, e sucessivamente reeditado. Nesse livro, o poema Palavras ao Mar, dá a medida do carácter épico de parte da sua poesia:

 

Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que o vento do largo eriça o pelo!
Junto da espuma com que as praias bordas,
Pelo marulho acalentada à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas — a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.

 

Frente ao mar, e desperto para a vida, como acima refere, os olhos do jovem poeta ter-lhe-ão incendiado a imaginação ao ver a adolescente adormecida que descreve no poema a seguir transcrito.
Acrescento apenas que as asas de anjo que o poeta no final do poema acrescenta à jovem adormecida, se, por um lado decorrem do decoro que a época exigia no extravasar do desejo trazido a público, por outro, são o tributo romântico à mulher desejada associando-a a uma  imagem imaculada e angelical.

 

 

Adormecida

 

Ela dormia… Sobre o alvor do leito
Desenhava-se, esplêndida miragem,
Seu lindo corpo, escultural, perfeito.

 

Encrespado das rendas da roupagem,
Seu seio brandamente palpitava
Como a lagoa no tremor da aragem.

 

Solto, o cabelo se desenrolava
Sobre os lençóis, em plena rebeldia,
Como um revolto mar que os alagava.

 

Como no céu, quando desponta o dia,
A aurora raia, de um sorriso a aurora
Pelo seu meigo rosto se expandia.

 

E ela dormia descuidada… Fora,
O mar gemia um cântico plangente
Como uma alma perdida que erra e chora.

 

Um raio de luar, branco e tremente,
Pela janela mal cerrada veio
Entrando, surda, sorrateiramente…

 

Ia beijá-la em voluptuoso anseio;
Mas, ao vê-la dormindo entre as serenas
Ondas daquele sono sem receio,

 

Hesitou em beijar-lhe as mãos pequenas,
E humildemente, e como ajoelhando,
Beijou-lhe a fímbria do vestido apenas…

 

E o lindo quadro, estático, fitando,
Senti não sei que mística ternura
Por toda a alma se me derramando

 

Porque acima daquela formosura
Do corpo, os seus quinze anos virginais
Envolviam-lhe a angélica figura
Na sombra de umas asas ideais.

 

 

Publicado pela primeira vez no livro Ardências (1885), tinha o poeta dezanove anos, e transcrito de Versos da Mocidade, (Ardências (1885), Relicário (1888), Avulsas (1889-95), Livraria Chardon, Porto, 1912.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Jean Simon Barthelemy (1743-1811) datada de 1778, de seu nome Júpiter e Antíope.
Na pintura, Júpiter surge transformado em sátiro a rondar a adormecida Antíope. Nesta ronda, o lúbrico deus engravidou-a crer nos relatos que nos chegaram, entre outros, de Ovídio em Metamorfoses, Liv III, v. 110-111.
Imagino que ao escrever o poema, Vicente de Carvalho tenha sentido a luxúria que o sátiro Júpiter na pintura evidencia.