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Fernando Pessoa 1964

Embora possa parecer redundante apresentar Fernando Pessoa, o universo alargado da web pode trazer ao blog leitores não familiarizados com a sua biografia, daí a pequena resenha em jeito de introdução.

Pessoa às vezes era uma pessoa muito deprimida e por vezes pensava:

Não sou nada/nunca serei nada

mas depois mudava, e mais alegre dizia:

Áparte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Isto acontecia quando julgava ser Álvaro de Campos, um engenheiro nascido em Tavira como eu, que escreveu coisas amargas. Outras vezes mais bem disposto o Sr. Pessoa vestia a pele de Alberto Caeiro e imaginava as coisas mais mirabolantes como Tive um sonho como uma fotografia / …, certamente conhecem o resto.

Andava sempre muito distraído com as poesias que tinha na cabeça. Ia a andar, parava, tirava um papelinho do bolso e escrevia o que lhe surgia na cabeça. Gostava de ser muitas pessoas já desde rapaz.

Um dia foi a casa do amigo Almada, pintor e poeta também. Depois de comer pouco porque era magrinho, e beber um bocado, desapareceu e nunca mais se viu.

Foi no outro dia, quando visitava o Museu, que olhando com atenção para a pintura de Almada representando Fernando Pessoa à secretária, o extraordinário aconteceu,

Ouço: Pst, pst, e nem percebo de onde vem. Olho em redor perplexo, pois a sala estava vazia a menos do segurança ao fundo, e então, virando-me para o quadro de novo, a figura de Fernando Pessoa piscou-me o olho, e quando o segurança pareceu ausentar-se, fez-me sinal para me aproximar, e diz-me ele à queima-roupa:

–        Já o tenho visto várias vezes a olhar-me atentamente e tenho tido vontade de lhe falar, mas os seguranças andam sempre por aí de nariz no ar e não me atrevi, mas hoje vi que o dali da porta foi à casa de banho e aproveitei para conversar um pouco.

Entabulámos conversa, e a primeira coisa que lhe perguntei foi porque tinha desaparecido sem dizer nada a ninguém.

–        Naquela festa em casa do Almada tinha bebido um bocado a mais e tive uma ideia fascinante que não queria perder. O meu bloco de bolso estava cheio e toda a gente estava mais ou menos alegre ou a dançar. Para não incomodar  ninguém fui à procura de papel. Abri uma porta e era o estúdio do Almada. Tinha uma tela grande no cavalete onde já estava pintada uma mesa. Devia ser uma natureza morta pois a mesa estava ali em posição com cadeira papel e tinta a servir de modelo. Sentei-me e comecei a escrever, mas devo ter adormecido pois quando acordei estava dentro desta tela onde tenho passado a vida. Não desgosto. As cores são alegres e há sempre muita gente aqui à volta a vê-la.

Continuámos a conversar e a certa altura disse-lhe quanto apreciava a poesia dele e de passagem referi:

– Sabe que andei a ler a sua correspondência?

O senhor é um bisbilhoteiro, disse com um risinho.

– E encontrei uma carta enviada de Portalegre quando o senhor estava bem bebido, é o Sr. que o diz.

Venerável porção de existência terrena, escreve o senhor ao destinatário, para mais à frente referir: Portalegre é um lugar onde tudo quanto um forasteiro pode fazer é cansar-se de não fazer nada. As suas qualidades componentes parecem-me conter (depois de uma profunda e cuidada análise), em quantidades relativas e incertas, calor, frio, semi-espanholismo e nada. …” e acrescenta-lhe um poema para terminar. Bem injusto diga-se de passagem, no que ao Alentejo respeita:

O Alentejo (visto do comboio)

Nada, tendo nada em seu redor

E, de permeio, algumas árvores somente

Nenhuma delas verde claramente

onde nada aparece, rio ou flor.

Se acaso há um inferno, ele aqui está.

Pois, se não aqui, onde o Diabo estará?

O que me fartei de rir ao lê-lo. Gostei sobretudo da “Venerável porção de existência terrena

Devo tê-la escrito há muito tempo pois nem me lembro de ter ido ao Alentejo.

A conversa continuou e perguntei-lhe se nunca saía dali.

Durante o dia, enquanto o museu está aberto, não saio senão as pessoas vinham ver-me e encontravam o quadro com um vazio no meu lugar. Depois de fechar, sobretudo no verão, gosto de ir até ao Chiado e fico dentro da estátua que me fizeram junto à Brasileira vendo quem passa. Sobretudo gosto quando as turistas fazem fotografias agarradas a mim. Estou sempre calado, nunca digo nada. Uma vez uma rapariga sentou-se-me no colo e segredou-me ao ouvido:

–        Gosto tanto de ti! Se fosses de carne e osso casava-me contigo. Quase me derreti com aquela declaração de amor. Era tal qual a a voz da Ofelinha naquela idade, e como eu gostava de ter casado com ela, sabe?

Também li as suas cartas de amor, disse-lhe. As que lhe escreveu e as que recebeu. E não concordo nada consigo nessa de que Todas as cartas de amor são ridículas. / Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.

– Não pode ser. Quem teve o atrevimento de as publicar? Isso não se faz. São coisas intimas, não são coisas para toda a gente saber. Mas já que são públicas, o que é que achou? Ela gostava de mim? Ainda não sei de deveria ter casado com ela. A certa altura pensei que podia casar com a filha da minha lavadeira, talvez fosse feliz

Mas voltando aos passeios. No inverno não vou para o Chiado porque está frio e chove, o que não é nada bom para o reumático que já me vai aparecendo, não sei se da idade, se de estar tanto tempo aqui sentado a esta secretária. Vou então às vezes à estação do metro de Alto de Moinhos ver as pessoas. Mas à hora a que fico livre aqui do museu já há pouca gente a não ser nas noites de futebol e aí sim, é uma alegria. Por acaso não sabe quando é que são os jogos? Como eu aqui não leio jornais nem vejo televisão não sei as datas e só por acaso é que acerto nos dias dos jogos. Mas é um espectáculo que vale a pena. Ainda ontem aconteceu e foi uma festa. Comi e bebi com quem lá estava, o que não me acontecia há anos. E devo ter comido qualquer coisa que me fez mal. Parece-me até que estou a precisar de ir à casa de banho urgentemente. Importa-se de me substituir aqui um bocadinho no quadro?

Devo ter olhado para ele espantado e aterrorizado, pois gargalhou e disse-me:

Não se assuste, estava só a brincar consigo. Continuando, na estação do metro aquele rapaz, o Julio Pomar, já não me conheceu, mas fez uns desenhos por fotografia, talvez, e saiu-se bem. Gosto de lá estar.

– Já que estamos nesta conversa tão franca posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?

Claro que pode, se não me apetecer não respondo.

– Qual é o mistério da arca dos seus escritos em que os inéditos nunca mais acabam?

Riu-se com uma risadinha casquinada e respondeu:

O que pensa que faço sentado a esta secretária? Que escrevo cartas comerciais em inglês? Isso já acabou. Agora quem as escreve é o Bernardo Soares, não sei se conhece.

– Conheço sim, é o do livro que o fez a si famoso no mundo, não é?

Esse mesmo. Pois as cartas escreve-as ele, eu aqui escrevo, prosa, poesia, o que me passa pela cabeça. Quando tenho oportunidade pego no que escrevi que me agrada e vou até à arca. Ponho os papeis no fundo, remexo-os e no dia seguinte o pessoal que está a decifrar os papeis leva as mãos à cabeça por não saber o que fazer. Aparecem papeis sobre a mesma coisa ligeiramente diferentes pois eu ás vezes esqueço-me do que escrevi e volto a escrever a mesma coisa de forma parecida e eles não decidem qual escolher, o que é natural. O que eu me rio só de pensar na cara deles. Bem gostava de estar lá para ver. Sobretudo quando encontrarem o papel que lá deixei ontem, inspiração de fim de festa.

Olhe, o segurança já vem de volta, vou ter que me calar para não o confundir. Se me ouve a falar ainda toca o alarme assustado, pensando que enlouqueceu, coitado. Volte mais vezes para conversar um pouco.

E voltou à posição em que estava no quadro.

O segurança aproximou-se de mim e com bons modos perguntou:

– O senhor está a sentir-se bem?

– Estou óptimo, porquê?

– Ao longe vi-o fazer gestos e pareceu-me que estava até a falar com o quadro, pelo que pensei que talvez alguma coisa não estivesse bem.

– Está tudo bem, obrigado. Virei costas e continuei a visita.

Depois destes extraordinários acontecimentos fui surpreendido com a noticia de jornal sobre mais um inédito, e não resisti a uma enorme gargalhada. Rezava assim:

Entre os papeis do poeta foi descoberto um inédito.

Numa folha branca aparece, a um terço da altura, o poema descoberto.

Modelo de simplicidade, consiste tão só numa vírgula cortada pela metade. Alvoroçou especialistas com o seu significado.

Foi convocado um congresso. Podem até dia vinte entregar-se comunicações.

Nota iconográfica

A pintura de José de Almada Negreiros (1893-1970),  Retrato de Fernando Pessoa, 1964, pretexto desta conversa pertence à colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.