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Do mundo servido na televisão temos tido noticia, suponho. Falam sempre de qualquer coisa e a criativa prática de fazer seguir as noticias de debates com especialistas de lugares comuns deixa-me irremediavelmente um pouco melancólico.

Medito a sublimidade

enquanto um ar abstracto

absorve a informação

sobre insectos e verduras

vendidos na televisão.

Seguem-se então os champôs com sabor de lucia-lima

e chás de sabão azul

cuecas para a cintura

viagens ao universo

e corridas para o lixo

separado em varias cores conforme a sua função.

Ministros em digressão cacarejam comentários

com grande satisfação.

Ficam de fora os perfumes com o cheiro a pintassilgo

e as frutas enlatadas em caixas de telemóvel

com garantia de um ano sem fazer a digestão.

 

E ontem, depois de uma destas experiências resolvi ver um filme.

Felizmente o dvd trouxe de volta as ásperas belezas do cinema italiano que incendiavam a minha imaginação adolescente naquele barracão onde vi cinema três vezes por semana.

O efeito destas experiências consegue medir-se pela visão da alegoria de Fellini em Amarcord, quando o protagonista adolescente é literalmente afogado nas imensas, descomunais, mamas da vendedoura de cigarros, a ponto de ficar febril. Mas não foram essas que afinal fui visitar.

Lembrei-me que mesmo as suaves belezas de Holywood ganham uma rugosidade especial ao chegar a Itália. É talvez do clima, ou do ar que se respira, mais provavelmente.

Veja-se Julia Roberts num filme há anos exibido em Lisboa. Como chega anémica a Itália e parte para o Oriente outra, muito mais mulher. Já lhe tinha acontecido semelhante no fabuloso musical de Woody Allen, Toda a gente diz que te amo, de tal maneira que ao olharmos os Tintoretto da Scuola di San Rocco depois do filme, os vemos de outra maneira (gosto mais de pensar isto que aceitar simplesmente tal transformação como o resultado da limpeza e restauro a que foram submetidos os frescos entre a primeira e a segunda vez que os vi).

Mas a outras aconteceu semelhante. Por exemplo Ingrid Bergman quando foi transportada para Itália por Rossellini, sobretudo naquele inesquecível Viagem em Itália, ganha uma densidade madura de mulher, ausente, por exemplo, da maneira como Hitchcock a filmou em Notorious, Difamação em português.

É este mesmo Hitchcock que permite ver a transformação italiana em Shirley MacLaine, aquela beleza sempre um pouco espantada de si, Sweet Charity de todos os desamparados, e que aqui me traz.

(Nota erudita: Este Sweet Charity foi a versão americana de Bob Fosse de As noites de Cabíria, de Fellini).

Filmou-a Hitchcock em The Trouble with Harry, em português chamado O terceiro tiro, uma desconcertante comédia onde o macabro do enterra /desenterra nos faz rir a bom rir, e onde a beleza impávida, serena, e de desarmante ingenuidade camufalda da MacLaine não tem menor responsabilidade. Esta Shirley MacLaine filmada em Itália por Vittorio De Sicca é toda ela outra criatura.

Tinha há algum tempo para ver um filme de sketch de Vittorio De Sicca, Sete Vezes Mulher, por ela protagonizado e por uma vasta lista de actores célebres. Gosto dos filmes de Vittorio De Sicca. Falta-lhes sempre um quantum para serem geniais, variando o tamanho do quantum de filme para filme.

O filme, vi-o com o desenfado que me estava a apetecer, e nos altos e baixos inevitáveis da fórmula do sketch surgem algumas pérolas, como o intelectual strepe-tease de MacLaine, lendo poesia nua e filosofando em redor do quarto, muito à anos sessenta, perante um quase incontrolado Vitorio Gassman. De antologia. Ver surgir numa curta intervenção a maliciosa Anita Ekberg, de que só recordo o banho na Fontana Trevi em Dolce Vita, foi um inesperado prazer.

Acabado o filme interroguei-me que poema escolheria eu para fazer ler a uma qualquer Shirley naquele preparo, e escolhi uma INVENÇÃO DE EROS que aqui transcrevo.

INVENÇÃO DE EROS

Fui procurar-te para ser contigo

quando colhi das horas que invadias.

Colhi da própria dor um nome antigo

que fosse o nome exacto em que virias.


Da límpida substância dos teus risos

fui-te inventando dentro dos meus braços

e os sóis mais densos puros e precisos

vieram dar-me a sombra dos teus passos.


E já não eram meus senão de erguê-los,

a tua face e os lábios e os cabelos

e o teu olhar para ninguém voltado.


Mas quem, o pleno amor de que nascias

se o deus que a ti igual encontrarias

ficou, pelo teu olhar, desabitado?

 


Noticia bibliográfica: O soneto é de Vitor Matos e Sá (1926–1975) e foi publicado no seu segundo livro O Silêncio e o Tempo em 1956.