Etiquetas
Não sou muito de nostalgias, nem de parar a olhar para trás contemplando a vida vivida. Já foi! Fez-me como sou, e para a frente é o caminho. Inevitavelmente o que no passado conheci, as gentes que me encheram a vida mostram-me que o tempo passou, e não foi o mesmo para todos. Confronto-me demasiadas vezes com a memória de mim nos outros diferente do que suponho. São certamente artifícios da construção do eu em cada um.
Já vivi a adolescência num tempo em que as canções marcaram a memória, e de Leonard Cohen (1934), Suzanne, mais que outras, deram-me êxtases que garantiram ao cantor e poeta a minha admiração eterna:
…
Os beijos começaram nos nossos lábios / E foram terminar em todo o lado /
…
Com aquele ritmo dolente que ele hoje ainda sabe fazer, criando pura magia quando temos uma mulher nos braços, foi Leonard Cohen (1934) o artífice de bem sucedidas aventuras onde o amor participou.
É por via das suas canções que chego à poesia que escreveu, belíssima frequentemente, relato de vida pessoal que é também relato de vida de uma geração que foi adulta nos últimos 40 anos:
…
O livro do amor que li estava errado / Tinha um final feliz/
…
Agarro-me ao seu Book of Longing, Livro do Desejo em português, traduzido por Vasco Gato, e um pouco ao sabor do acaso escolho alguns poemas.
A Grande Divisão
Nunca gostei da tua forma de amar
Tão tortuosa, tão antiquada
Ainda assim jejuei como um monge
E rezei para ver-te nua
Via-te a magoar toda a gente
Um governo de sofrimento
Dizia a mim mesmo “Seja Feita A Tua Vontade
A minha vontade não serve para nada”
Bebi bastante perdi o emprego
Vivi como se nada interessasse
E tu, tu nunca apareceste
Nem sequer respondeste
Eu era um tempo cego e avariado
E a bondade estava proibida
Creio que tentei apanhar uma boleia
Dos ácidos para a religião
Mas todas as guias luminosas tinham desaparecido
Bem como todas as boas direcções
O livro do amor que li estava errado
Tinha um final feliz
Mas quando o sistema estava já abalado
Para lá do reconhecimento possível
As coisas simples que eu esquecera
Retomaram a sua doce posição
Pensei ver-te com uma criança
Pensei ter-te ouvido a chorar
E o jardim inteiro à tua volta louco
E seguro sob a tua guarda
Não me recordo do que aconteceu depois
Mantive-te à distância
Mas emaranhado no nó do sexo
O meu castigo foi levantado
Os teus remédios debaixo da minha não
Os teus dedos no meu cabelo
Os beijos começaram nos nossos lábios
E foram terminar em todo o lado
E quando me preparava para partir
Tu puxaste-me para o teu lado
Para sermos Adão e Eva
Antes da Grande Divisão
E aqui amarrados não conseguimos mexer-nos
Excepto um para o outro
Estendemo-nos e afogamo-nos como os lírios
De lado nenhum para o çentro
E aqui não posso erguer uma mão
Para seguir as linhas da beleza
Mas as linhas estão traçadas e o amor está contente
Por ir e vir com tamanha liberdade
E aqui nenhum pecado pode ser confessado
Nenhum pecador perdoado
Está escrito que a lei tem de descansar
Antes de a lei ser escrita
E aqui o silêncio é apagado
O pano de fundo desmanchado por inteiro
A tua beleza não pode ser comparada
Não há espelho aqui, nem sombra
Mas eis que agora chega um vento que arranha
Sem propósito e sereno
Fere-me quando me separo dos teus lábios
Fere-nos pelo meio
E agora podem de novo as guerras começar
A tortura e o riso
Choramos alto, como fazem os humanos
Antes da verdade, e depois
Não sei como irá terminar
Sempre deixaste isso em aberto
Mas, ah, tu és a única amiga
Que nunca pensei conhecer.
(Tradução de Vasco Gato)
Because of a few songs
Because of a few songs
wherein I spoke of their mistery
women have been
exceptionally kind
to my old age
They make a secret place
in their busy lives
and they take me there.
They become naked
in their different ways
and they say,
“Look at me, Leonard
look at me one last time.”
Then they bend over the bed
and cover me up
like a baby that is shivering.
Por causa de umas quantas canções
Por causa de umas quantas canções
em que falava do mistério delas,
as mulheres têm-se mostrado
excepcionalmente compreensivas
para com a minha idade avançada.
Criam um lugar secreto
nas suas vidas ocupadas
e levam-me até lá.
Despem-se
cada uma à sua maneira
e dizem,
“Olha para mim, Leonard
olha para mim uma última vez.”
Depois inclinam-se sobre a cama
e cobrem-me
como a um bebé que treme.
(Tradução de Vasco Gato)
Half of the world
Every night she’d come to me
I’d cook for her, I’d pour her tea
She was in her thirties then
had made some money, lived with men
We’d lay us down to give and get
beneath the white mosquito net
And since no counting had begun
we lived a thousand years one
The candles burned, the moon went down
the polished hill, the milky town
transparent, weightless, luminous,
uncovering the two of us
on that fundamental ground,
where love’s unwilled, unleashed, unbound
and half the perfect world is found
Metade do Mundo
Todas as noites ela vinha ter comigo
Eu cozinhava para ela, servia-lhe chá
Ela tinha trinta e tal naquela altura
conseguira fazer algum dinheiro, vivera com homens
Deitávamos-nos para dar e receber
debaixo do mosquiteiro branco
E uma vez que nenhuma contagem começara
viviamos mil anos num só
As velas ardiam, a lua descia
a colina polida, a cidade leitosa
transparente, sem peso, luminosa,
destapando-nos aos dois
naquele chão fundamental,
onde o amor é fortuito, desatado, desencarcerado
e do mundo perfeito se acha metade
(Tradução de Vasco Gato)
the road is too long
the sky is too vast
the wandering heart
is homeless at last
a estrada é demasiado longa
o céu demasiado vasto
o coração vagabundo
está finalmente sem abrigo
(Tradução Carlos Mendonça Lopes)
Abro um pouco a janela da nostalgia e vou ouvir algumas canções, sobretudo uma, onde a música canta, mais que as palavras, a felicidade de um reencontro fugaz: Tonight Will Be Fine, Esta Noite Correrá Bem, publicada originalmente em 1969, no disco Songs From A Room.
Tonight Will Be Fine
Sometimes I find I get to thinking of the past.
We swore to each other then that our love would surely last.
You kept right on loving, I went on a fast,
now I am too thin and your love is too vast.
But I know from your eyes
and I know from your smile
that tonight will be fine,
will be fine, will be fine, will be fine
for a while.
I choose the rooms that I live in with care,
the windows are small and the walls almost bare,
there’s only one bed and there’s only one prayer;
I listen all night for your step on the stair.
But I know from your eyes
and I know from your smile
that tonight will be fine,
will be fine, will be fine, will be fine
for a while.
Oh sometimes I see her undressing for me,
she’s the soft naked lady love meant her to be
and she’s moving her body so brave and so free.
If I’ve got to remember that’s a fine memory.
And I know from her eyes
and I know from her smile
that tonight will be fine,
will be fine, will be fine, will be fine
for a while.
A edição portuguesa de Livro do Desejo é de Quasi Edições, 2008, é bilingue e editorialmente notável, oferecendo uma paginação onde os desenhos do poeta acompanham e comentam os poemas, proporcionando uma leitura paralela ao impacto que cada poema induz no leitor.
Acompanham o artigo os nus azuis de Matisse (1869-1964). Abre O Nu Azul com Cabelo ao Vento, segue-se o Nu Azul Sentado, e termina com o Nu Azul de Pé, todos de 1952.