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Blue Nude with Hair in the Wind 1952

Não sou muito de nostalgias, nem de parar a olhar para trás contemplando a vida vivida. Já foi! Fez-me como sou, e para a frente é o caminho. Inevitavelmente o que no passado conheci, as gentes que me encheram a vida mostram-me que o tempo passou, e não foi o mesmo para todos. Confronto-me demasiadas vezes com a memória de mim nos outros diferente do que suponho. São certamente artifícios da construção do eu em cada um.

Já vivi a adolescência num tempo em que as canções marcaram a memória, e de Leonard Cohen (1934), Suzanne, mais que outras, deram-me êxtases que garantiram ao cantor e poeta a minha admiração eterna:

Os beijos começaram nos nossos lábios / E foram terminar em todo o lado /

Com aquele ritmo dolente que ele hoje ainda sabe fazer, criando pura magia quando temos uma mulher nos braços, foi Leonard Cohen (1934) o artífice de bem sucedidas aventuras onde o amor participou.

É por via das suas canções que chego à poesia que escreveu, belíssima frequentemente, relato de vida pessoal que é também relato de vida de uma geração que foi adulta nos últimos 40 anos:

O livro do amor que li estava errado / Tinha um final feliz/

Standing Blue Nude 1952

Agarro-me ao seu Book of Longing, Livro do Desejo em português, traduzido por Vasco Gato, e um pouco ao sabor do acaso escolho alguns poemas.

A Grande Divisão

Nunca gostei da tua forma de amar

Tão tortuosa, tão antiquada

Ainda assim jejuei como um monge

E rezei para ver-te nua

 

Via-te a magoar toda a gente

Um governo de sofrimento

Dizia a mim mesmo “Seja Feita A Tua Vontade

A minha vontade não serve para nada”

 

Bebi bastante perdi o emprego

Vivi como se nada interessasse

E tu, tu nunca apareceste

Nem sequer respondeste

 

Eu era um tempo cego e avariado

E a bondade estava proibida

Creio que tentei apanhar uma boleia

Dos ácidos para a religião

 

Mas todas as guias luminosas tinham desaparecido

Bem como todas as boas direcções

O livro do amor que li estava errado

Tinha um final feliz

 

Mas quando o sistema estava já abalado

Para lá do reconhecimento possível

As coisas simples que eu esquecera

Retomaram a sua doce posição

 

Pensei ver-te com uma criança

Pensei ter-te ouvido a chorar

E o jardim inteiro à tua volta louco

E seguro sob a tua guarda

 

Não me recordo do que aconteceu depois

Mantive-te à distância

Mas emaranhado no nó do sexo

O meu castigo foi levantado

 

Os teus remédios debaixo da minha não

Os teus dedos no meu cabelo

Os beijos começaram nos nossos lábios

E foram terminar em todo o lado

 

E quando me preparava para partir

Tu puxaste-me para o teu lado

Para sermos Adão e Eva

Antes da Grande Divisão

 

E aqui amarrados não conseguimos mexer-nos

Excepto um para o outro

Estendemo-nos e afogamo-nos como os lírios

De lado nenhum para o çentro

 

E aqui não posso erguer uma mão

Para seguir as linhas da beleza

Mas as linhas estão traçadas e o amor está contente

Por ir e vir com tamanha liberdade

 

E aqui nenhum pecado pode ser confessado

Nenhum pecador perdoado

Está escrito que a lei tem de descansar

Antes de a lei ser escrita

 

E aqui o silêncio é apagado

O pano de fundo desmanchado por inteiro

A tua beleza não pode ser comparada

Não há espelho aqui, nem sombra

 

Mas eis que agora chega um vento que arranha

Sem propósito e sereno

Fere-me quando me separo dos teus lábios

Fere-nos pelo meio

 

E agora podem de novo as guerras começar

A tortura e o riso

Choramos alto, como fazem os humanos

Antes da verdade, e depois

 

Não sei como irá terminar

Sempre deixaste isso em aberto

Mas, ah, tu és a única amiga

Que nunca pensei conhecer.

(Tradução de Vasco Gato)

Because of a few songs

Because of a few songs

wherein I spoke of their mistery

women have been

exceptionally kind

to my old age

They make a secret place

in their busy lives

and they take me there.

They become naked

in their different ways

and they say,

“Look at me, Leonard

look at me one last time.”

Then they bend over the bed

and cover me up

like a baby that is shivering.

Por causa de umas quantas canções

Por causa de umas quantas canções

em que falava do mistério delas,

as mulheres têm-se mostrado

excepcionalmente compreensivas

para com a minha idade avançada.

Criam um lugar secreto

nas suas vidas ocupadas

e levam-me até lá.

Despem-se

cada uma à sua maneira

e dizem,

“Olha para mim, Leonard

olha para mim uma última vez.”

Depois inclinam-se sobre a cama

e cobrem-me

como a um bebé que treme.

(Tradução de Vasco Gato)

Half of the world

Every night she’d come to me

I’d cook for her, I’d pour her tea

She was in her thirties then

had made some money, lived with men

We’d lay us down to give and get

beneath the white mosquito net

And since no counting had begun

we lived a thousand years one

The candles burned, the moon went down

the polished hill, the milky town

transparent, weightless, luminous,

uncovering the two of us

on that fundamental ground,

where love’s unwilled, unleashed, unbound

and half the perfect world is found

Metade do Mundo

Todas as noites ela vinha ter comigo

Eu cozinhava para ela, servia-lhe chá

Ela tinha trinta e tal naquela altura

conseguira fazer algum dinheiro, vivera com homens

Deitávamos-nos para dar e receber

debaixo do mosquiteiro branco

E uma vez que nenhuma contagem começara

viviamos mil anos num só

As velas ardiam, a lua descia

a colina polida, a cidade leitosa

transparente, sem peso, luminosa,

destapando-nos aos dois

naquele chão fundamental,

onde o amor é fortuito, desatado, desencarcerado

e do mundo perfeito se acha metade

(Tradução de Vasco Gato)

the road is too long

the sky is too vast

the wandering heart

is homeless at last

a estrada é demasiado longa

o céu demasiado vasto

o coração vagabundo

está finalmente sem abrigo

(Tradução Carlos Mendonça Lopes)

Standing Blue Nude  1952

Abro um pouco a janela da nostalgia e vou ouvir algumas canções, sobretudo uma, onde a música canta, mais que as palavras, a felicidade de um reencontro fugaz: Tonight Will Be Fine, Esta Noite Correrá Bem, publicada originalmente em 1969, no disco Songs From A Room.

Tonight Will Be Fine

Sometimes I find I get to thinking of the past.

We swore to each other then that our love would surely last.

You kept right on loving, I went on a fast,

now I am too thin and your love is too vast.

But I know from your eyes

and I know from your smile

that tonight will be fine,

will be fine, will be fine, will be fine

for a while.

I choose the rooms that I live in with care,

the windows are small and the walls almost bare,

there’s only one bed and there’s only one prayer;

I listen all night for your step on the stair.

But I know from your eyes

and I know from your smile

that tonight will be fine,

will be fine, will be fine, will be fine

for a while.

Oh sometimes I see her undressing for me,

she’s the soft naked lady love meant her to be

and she’s moving her body so brave and so free.

If I’ve got to remember that’s a fine memory.

And I know from her eyes

and I know from her smile

that tonight will be fine,

will be fine, will be fine, will be fine

for a while.

A edição portuguesa de Livro do Desejo é de Quasi Edições, 2008, é bilingue e editorialmente notável, oferecendo uma paginação onde os desenhos do poeta acompanham e comentam os poemas, proporcionando uma leitura paralela ao impacto que cada poema induz no leitor.

Acompanham o artigo os nus azuis de Matisse (1869-1964). Abre O Nu Azul com Cabelo ao Vento, segue-se o Nu Azul Sentado, e termina com o Nu Azul de Pé, todos de 1952.