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Masaccio (1401-1428), génio de curta vida, morreu com 27 anos, tem em Florença, no fresco da Santíssima Trindade em Santa Maria Novelle, a primeira utilização da perspectiva total na pintura ocidental; e nos frescos da Capela Brancacci em Santa Maria del Carmine, a inovação do uso da luz com forma de definir figuras e adereços, substituindo a iluminação uniforme do quadro, até aí praticada, pela iluminação a partir de um foco, concretamente a suposta luz vida da janela, criando assim um jogo de luz e sombra que desde então funcionou como paradigma neste género pictórico.
Dos seis frescos da Capela Brancacci, o Pagamento do Tributo e a Expulsão do Paraíso são aceites unanimemente como as suas obras primas. É este último fresco, Adão e Eva expulsos do Paraíso que hoje me interessa. Abre o artigo a imagem que dele durante séculos foi vista. Expulsos do Paraíso depois do pecado original, Adão e Eva apresentam-se com umas folhas a cobrir o sexo. Foi o restauro dos frescos entre 1981 e 1989 que revelou o brilho da pintura que se escondia sob séculos de negligência. Acontece que a folhagem cobrindo o sexo de Adão e Eva era uma excrescência acrescentada provavelmente no século XVII, a qual foi removida com o restauro, permitindo hoje a visão sem tabus do corpo, tal como à época era aceite, e hoje ainda é quase matéria de escândalo. Daí a escolha do poema de Jorge de Sena (1919-1978), Sobre a Nudez.
Sobre a Nudez
Quoi! Tout nu! dira-t-on, n’avait-il pas de honte?
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Tout est nu sur la terre, hormis l’hypocrisie.
Musset, Namouna
Nus nascemos, nus
nos inspecciona o médico,
a tropa, o professor de ginástica.
Nus, na mesa de operações,
na cama de hospital,
na da morte.
Nus no amor para nos vermos,
sentirmos a pele dos outros corpos e
para mais que penetrarmos
termos o choque e o roçar
que nos dizem do quanto penetramos.
Nus sempre, menos no que não importa.
Porque há então quem tema tanto
a nudez dos outros? Será
que teme, menos que o feio
de muitos, a beleza de
alguns, ou o fascínio das
esplêndidas partes
de uns raros? E que, paralisados
(de inveja), deixemos que o mundo e a vida
se soltem à deriva
para a nua liberdade?
1968-69
Tradução da epígrafe
O quê! Completamente nu! dir-se-á, não tinha vergonha?
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Tudo está nu sobre a terra, salvo a hipocrisia.
Na capela, frente ao fresco de Masaccio, encontra-se o fresco A Tentação, pintado por Masolino (1383-1447), de resto o pintor a quem foi encomendada a obra na capela e de quem Masaccio era ajudante. Com ele encerro o artigo.
No contraste entre a amável serenidade do par pintado por Masolino e a expressiva dor nas fisionomias e atitudes corporais representadas por Masaccio está toda a medida da invenção e génio de Masaccio.
Pede comparar-se esta Tentação e o conjunto de pinturas que quase cem anos depois pintou sobre o mesmo assunto Lucas Cranach, o Velho, que noutro artigo se encontram, e permitem ver a variedade expressiva a que o assunto se presta.
Nota bibliográfica
Como já noutro artigo o escrevi, se os livros de arte são belos objectos onde com prazer nos perdemos, os livros sobre frescos são preciosos, pois a tudo isso acrescentam o permitir ver o detalhe que no local é inacessível, seja pela iluminação, seja pela distância.
Ao leitor interessado recomendo como imperdíveis os volumes (4) Italian Frescoes publicados por Abbeville Press, New York, e para estes frescos em particular, Italian Frescoes, The Early Renaissance 1400-1470, de Steffi Roetgen.
O poema Sobre a Nudez foi publicado pela primeira vez em Peregrinatio ad loca infecta 70 poemas, alguns dos quais amáveis, com um epílogo altamente filosófico, e sem prefácio do autor, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969.