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Degas - Diego Martelli 1879Isto que … como tempo passa e vais medindo / em rugas e lembranças e em sombrias / e plácidas visões de coisa alguma, … Isto que passa como vida …/ não queiras, não perguntes, não esperes

Abro com um poema de Jorge de Sena (1919-1978) escrito nos tempos sombrios do Portugal de finais dos anos 50, onde a recusa da aceitação da vida como ela se oferecia, corre. Haverá pontos de contacto com a realidade portuguesa de hoje? Sentem os portugueses, hoje, ISTO, assim? Aos leitores a resposta.

 ISTO

Não queiras, não perguntes, não esperes.

Isto que passa como vida e tu

medes em dias, horas e minutos,

ou como tempo passa e vais medindo

em rugas e lembranças e em sombrias

e plácidas visões de coisa alguma,

às vezes sorridentes, mas sombrias;

sim: isto, a que dás nomes, que separas

do resto em que surgiu, de que surgiu;

isto, que já não queres, não interrogas,

de que já nada esperas, mas que queres,

porque perguntas sempre, e por que esperas;

isto, que já não és tu, nem vai contigo,

nem fica quando vais; em que não pensas,

porque ao medir apenas medes e

nada mais fazes que medir — só isto,

apenas isto, isto unicamente:

não queiras, não perguntes, não esperes,

que o pouco ou muito é tudo o que te resta.

1958

Há evidentemente uma leitura atemporal do poema, convocando a reflexão sobre o passar do tempo em cada um e as escolhas por fazer, num adiar que leva para o passado os sonhos quando as rugas e lembranças se instalam no lugar da vontade do novo:

Tem tanta pressa o corpo! E já passou, / quando um de nós ou quando o amor chegou.

E com isto aporto ao poema Glosa à Chegada do Outono também de Jorge de Sena escrito pela mesma época.

 

Glosa à Chegada do Outono

O corpo não espera. Não. Por nós

ou pelo amor. Este pousar de mãos,

tão reticente e que interroga a sós

a tépida secura acetinada,

a que palpita por adivinhada

em solitários movimentos vãos;

este pousar em que não estamos nós,

mas uma sêde, uma memória, tudo

o que sabemos de tocar desnudo

o corpo que não espera; este pousar

que não conhece, nada vê, nem nada

ousa temer no seu temor agudo…

 

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,

quando um de nós ou quando o amor chegou.

1958

 

Notícia bibliográfica e iconográfica

Poemas publicados pela primeira vez em Fidelidade, 1958. Transcritos de Poesia – II, Moraes Editores, Lisboa 1978.

É de Degas (1834-1917) a pintura que acompanha o artigo.