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Isto que … como tempo passa e vais medindo / em rugas e lembranças e em sombrias / e plácidas visões de coisa alguma, … Isto que passa como vida …/ não queiras, não perguntes, não esperes
Abro com um poema de Jorge de Sena (1919-1978) escrito nos tempos sombrios do Portugal de finais dos anos 50, onde a recusa da aceitação da vida como ela se oferecia, corre. Haverá pontos de contacto com a realidade portuguesa de hoje? Sentem os portugueses, hoje, ISTO, assim? Aos leitores a resposta.
ISTO
Não queiras, não perguntes, não esperes.
Isto que passa como vida e tu
medes em dias, horas e minutos,
ou como tempo passa e vais medindo
em rugas e lembranças e em sombrias
e plácidas visões de coisa alguma,
às vezes sorridentes, mas sombrias;
sim: isto, a que dás nomes, que separas
do resto em que surgiu, de que surgiu;
isto, que já não queres, não interrogas,
de que já nada esperas, mas que queres,
porque perguntas sempre, e por que esperas;
isto, que já não és tu, nem vai contigo,
nem fica quando vais; em que não pensas,
porque ao medir apenas medes e
nada mais fazes que medir — só isto,
apenas isto, isto unicamente:
não queiras, não perguntes, não esperes,
que o pouco ou muito é tudo o que te resta.
1958
Há evidentemente uma leitura atemporal do poema, convocando a reflexão sobre o passar do tempo em cada um e as escolhas por fazer, num adiar que leva para o passado os sonhos quando as rugas e lembranças se instalam no lugar da vontade do novo:
Tem tanta pressa o corpo! E já passou, / quando um de nós ou quando o amor chegou.
E com isto aporto ao poema Glosa à Chegada do Outono também de Jorge de Sena escrito pela mesma época.
Glosa à Chegada do Outono
O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo…
Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.
1958
Notícia bibliográfica e iconográfica
Poemas publicados pela primeira vez em Fidelidade, 1958. Transcritos de Poesia – II, Moraes Editores, Lisboa 1978.
É de Degas (1834-1917) a pintura que acompanha o artigo.