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sentir que cada encontro é uma fome.
A voracidade do amor é isto. E que bem o diz Ibn ‘Arabî (1165-1240) o poeta andaluz de quem hoje vos trago dois poemas escritos naquela linguagem sábia e condensada que dá conta de verdades insofismáveis.
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na ausência a saudade me consome
mas também não me sacia o achamento
saudade é ter presença e afastamento
sentir que cada encontro é uma fome.
paixão é ter remédio e, todavia
é ter visão de nós que em nós desce
não se pode fugir, a ânsia cresce
vizinha de uma mística harmonia.
No poema que segue, através de uma surpreendente parábola, conta-nos o poeta de uma evidência raramente apreendida: amado e amada só o são verdadeiramente quando se sentem apenas um.
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um dia um amoroso veio bater
à porta da sua bem-amada
e ela, lá de dentro, veio dizer:
quem é? deu ele em responder:
sou eu, minha adorada!
disse ela, de seguida, já irada:
os dois não cabemos nesta casa!
no deserto ele foi arder a sua brasa
meditando até de madrugada.
voltou à porta dela, e bateu
e, uma vez mais, a voz se ouviu:
quem é? és tu! ele respondeu.
e logo aquela porta então se abriu.
As versões são do nosso arabista e poeta Adalberto Alves, e constam do seu livro de poemas, No Vértice da Noite, belíssima edição Argusnauta (editor Luís Gomes), com ilustrações de Figueiredo Sobral, Lisboa, 2007.
E deste livro escolho para terminar, agora de Adalberto Alves, como se à noite o mar…
como se à noite o mar…
numa estranha rota iluminada
deixasse livre o sonho esvoaçar:
os rostos que se foram, em parada,
em silêncio nos vêm visitar.
sob chuva distante e torturada
que na nossa tristeza deixa os sais,
rostos amados na sua desfilada,
vão-nos dizendo devagar: jamais!
como se à noite o mar…
me forçasse a perguntar, oh mágoa,
nesta fria margem de ilusão
porque correm os dias como água,
se não passam nem nunca passarão?
silente carícia de uma ignota mão
que marcas nas faces o signo da lua
abre-me a alma, fecha-me a razão
dá-me aquela Presença que é só Tua.