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Cesariny - A Antonin ArtaudAgora que o Verão se despede, alguma poesia de Mário Cesariny (1923-2006) a acompanhar o romance da praia de moledo que a seguir transcrevo

canto da hora do banho

ó mar contente, tão frio

que o verde das ondas é neve

fazes meu corpo tão leve,

no ar, vazio!

meus seios, cabelos, tudo é brando!

na mão do mar talhado cerce

vou, como se a um velho comando

desobedecesse!

e raia de leve um sol macio

que ainda não amadurou

frio

de manhã forte e silente

as minhas mãos nem são de gente

são formas de água, de neve

sobre o maillot

Poema de belos versos, ao lê-lo percorre-nos o arrepio de entrar pela manhã na água gelada do mar do norte de Portugal, —...tão frio / que o verde das ondas é neve— numa sensação quase física, e cito de novo: e raia de leve um sol macio / que ainda não amadurou, apanágio apenas da grande poesia, exista ou não o sublime do assunto.

O poema abre o livro burlescas teóricas e sentimentais.

Continuemos com a poesia de Cesariny, e do livro discurso sobre a reabilitação do real quotidiano transcrevo três poemas.

XI

queria de ti um país de bondade e de bruma

queria de ti o mar de uma rosa de espuma

Ouçamos o poeta ler este poema onde a pausa na leitura após um primeiro queria lhe dá um sentido novo.

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Depois deste encontro de desejo, o relato em partes de um acidente urbano: fala o condutor, falam os mirones e relata-nos o poeta o sucedido; tudo com a mestria da concisão poética.

XIX

ia muito bem a guiar o automóvel

quando ao fazer a mudança ( necessária?)

tudo mudou muito mais do que esperava

o automóvel (embora sempre andando) virou caixote do lixo

 

e ela — aflição — passou a ser apenas

um busto fora do caixote fechado

e a dar à manivela muito depressa.

A rua era comprida? perguntou a quem também estava

 

que contou de repente que com ela era assim: uma escada para o alto que nunca mais acabava.

Também havia quem viajasse muito

todas as noites e no mesmo sentido

 

estava esse muito cansado pois com os comboios normais

basta não querer e pronto mas se é sonho

não há manobra possível tem de se ir mesmo

Termino a viagem a este livro do poeta com o famoso poema X

 X

falta por aqui uma grande razão

uma razão que não seja só uma palavra

ou um coração

ou um meneio de cabeças após o regozijo

ou um risco na mão

ou um cão

ou um braço para a história

da imaginação

 

podemos pois está claro

transferir-nos

imaginar durante um quarto de hora

os séculos que virão

— os séculos um

e dois

da colonização —

depois

depois é este cair na madrugada ardente

na madrugada de constantemente

sem sol

e sem arpão

 

faltas tu faltas tu

falta que te completem

ou destruam

não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada

— não, de nenhuma maneira resultante!

nem mesmo o amor

não é o amor que falta

 

falta uma grande realmente razão

apenas entrevista durante as negociações

oclusa na operação do fuzilamento cantante

rodoviária na chama dos esforços hercúleos

morta no corpo a corpo do ismo contra ismo

 

falta uma flor

mas antes de arrancada

 

falta, ó Lautréamont, não só que todo o figo coma o seu burro

mas que todos os burros se comam a si mesmos

que todos os amores palavras propensões sistemas de palavras e de propensões

se comam a si mesmos

muitas horas por dia até de manhã cedo

até que só reste o a o b e o c das coisas

para o espanto dos parvos

que aliás não estão a mais

 

isso eu o espero

e o faço

junto à imagem da

criança morta

depois que Pablo Picasso devorou o seu figo

sobre o cadáver dela

e longas filas de bandeiras esperam

devorar Picasso

que é perto da criança, ao lado da boca minha