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Agora que o Verão se despede, alguma poesia de Mário Cesariny (1923-2006) a acompanhar o romance da praia de moledo que a seguir transcrevo
canto da hora do banho
ó mar contente, tão frio
que o verde das ondas é neve
fazes meu corpo tão leve,
no ar, vazio!
meus seios, cabelos, tudo é brando!
na mão do mar talhado cerce
vou, como se a um velho comando
desobedecesse!
e raia de leve um sol macio
que ainda não amadurou
frio
de manhã forte e silente
as minhas mãos nem são de gente
são formas de água, de neve
sobre o maillot
Poema de belos versos, ao lê-lo percorre-nos o arrepio de entrar pela manhã na água gelada do mar do norte de Portugal, —...tão frio / que o verde das ondas é neve— numa sensação quase física, e cito de novo: e raia de leve um sol macio / que ainda não amadurou, apanágio apenas da grande poesia, exista ou não o sublime do assunto.
O poema abre o livro burlescas teóricas e sentimentais.
Continuemos com a poesia de Cesariny, e do livro discurso sobre a reabilitação do real quotidiano transcrevo três poemas.
XI
queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma
Ouçamos o poeta ler este poema onde a pausa na leitura após um primeiro queria lhe dá um sentido novo.
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Depois deste encontro de desejo, o relato em partes de um acidente urbano: fala o condutor, falam os mirones e relata-nos o poeta o sucedido; tudo com a mestria da concisão poética.
XIX
ia muito bem a guiar o automóvel
quando ao fazer a mudança ( necessária?)
tudo mudou muito mais do que esperava
o automóvel (embora sempre andando) virou caixote do lixo
e ela — aflição — passou a ser apenas
um busto fora do caixote fechado
e a dar à manivela muito depressa.
A rua era comprida? perguntou a quem também estava
que contou de repente que com ela era assim: uma escada para o alto que nunca mais acabava.
Também havia quem viajasse muito
todas as noites e no mesmo sentido
estava esse muito cansado pois com os comboios normais
basta não querer e pronto mas se é sonho
não há manobra possível tem de se ir mesmo
Termino a viagem a este livro do poeta com o famoso poema X
X
falta por aqui uma grande razão
uma razão que não seja só uma palavra
ou um coração
ou um meneio de cabeças após o regozijo
ou um risco na mão
ou um cão
ou um braço para a história
da imaginação
podemos pois está claro
transferir-nos
imaginar durante um quarto de hora
os séculos que virão
— os séculos um
e dois
da colonização —
depois
depois é este cair na madrugada ardente
na madrugada de constantemente
sem sol
e sem arpão
faltas tu faltas tu
falta que te completem
ou destruam
não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada
— não, de nenhuma maneira resultante!
nem mesmo o amor
não é o amor que falta
falta uma grande realmente razão
apenas entrevista durante as negociações
oclusa na operação do fuzilamento cantante
rodoviária na chama dos esforços hercúleos
morta no corpo a corpo do ismo contra ismo
falta uma flor
mas antes de arrancada
falta, ó Lautréamont, não só que todo o figo coma o seu burro
mas que todos os burros se comam a si mesmos
que todos os amores palavras propensões sistemas de palavras e de propensões
se comam a si mesmos
muitas horas por dia até de manhã cedo
até que só reste o a o b e o c das coisas
para o espanto dos parvos
que aliás não estão a mais
isso eu o espero
e o faço
junto à imagem da
criança morta
depois que Pablo Picasso devorou o seu figo
sobre o cadáver dela
e longas filas de bandeiras esperam
devorar Picasso
que é perto da criança, ao lado da boca minha