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Hiroshige (1797-1858) - 100 vistas de Edo - 52 - Chuvada súbita em Atake originalAs pessoas na ponte

Estranho planeta e estranhas as pessoas que aí vivem.
Sucumbem ao tempo, mas não querem reconhecê-lo.
Têm maneiras de exprimir o seu protesto,
fazendo pinturas como, por exemplo, esta.

Nada de singular à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma das suas margens.
Vê-se uma piroga navegando penosa contra a corrente.
Vê-se a ponte sobre a água e vêem-se as pessoas na ponte.
As pessoas visivelmente apressam o passo,
porque de uma nuvem negra
desatou a chover torrencialmente.

A questão é que nada mais se passa.
A nuvem não muda de cor nem de forma.
A chuva não aumenta nem cessa.
A piroga navega sem se mexer.
As pessoas na ponte correm
no mesmíssimo lugar de ainda há pouco.

É difícil não fazer aqui um comentário:
Isto não é uma pintura inocente.
O tempo aqui foi suspenso.
Deixaram de contar com as suas leis.
Negaram-lhe a influencia que tem
no desenrolar dos acontecimentos.
Menosprezaram-no e ultrajaram-no.

Por obra de um rebelde.
Um tal Hiroshige Utagawa,
(uma criatura que, aliás, há muito
e como deve ser, morreu),
o tempo tropeçou e caiu.

Talvez seja só uma travessura sem significado,
uma brincadeira à escala de umas galáxias,
em todo o caso, porém,
acrescentemos o seguinte:

Há gerações que é de bom tom
ter esta pintura em grande apreço,
deleitar-se com ela, emocionar-se.

Mas há aqueles, a quem isto não basta.
Ouvem até o murmúrio da chuva,
sentem frio das gotas na nuca e nas costas,
olham para a ponte e para as pessoas,
como se ali se vissem retratados
naquela corrida que nunca mais chega ao fim,
naquele caminho que fim não tem,
eternamente por palmilhar,
e acreditam na sua desfaçatez
que assim é na realidade.

Tradução de Teresa Fernandes Swiatkewicz, in Wislawa Szymborska, Um Passo da Arte Eterna, Esfera do Caos Editores, Lisboa 2013.

O fluir do tempo em nós e a representação visual que o cristaliza são, numa primeira leitura, a matéria da reflexão poética de Wislawa Szymborska (1923-2013) neste poema, a propósito de uma gravura famosa de Hiroshige (1797-1858).

Se na segunda estrofe a gravura de Hiroshige é descrita, e trata-se da gravura 52 — Chuvada súbita em Atake — do ciclo Cem vistas de Edo, e com isso poder-se considerar estarmos perante um poema ecfrástico, na medida em que descreve uma obra de arte, todo o resto do poema vai noutras direcções.

Como sempre na poesia desta mulher genial, na simplicidade da linguagem moram as mais profundas reflexões sobre o existir: leia-se de novo toda a última estrofe do poema.

Nele temos o pretexto para nos questionarmos como olhamos as obras de artes visuais no seu significado intrínseco e na sua relação connosco. Depois, o tempo, o que nos acontece, e o que do seu fluir aproveitamos. Há na vida o tempo de a viver e o seu percurso, o caminho por onde a vivemos, seguindo.

A ponte, ligação entre dois pontos, origem e destino, é um não lugar para parar ou cristalizar, e os passos de quem vive aprisionado nesta ponte simbólica, onde o tempo parou, levam-no a caminhar sem sair do mesmo sitio. A ironia nesta poesia revela-se no afirmar o contrário do que escreve.

Embora se possa fazer uma leitura política dos versos

O tempo aqui foi suspenso.
Deixaram de contar com as suas leis.
Negaram-lhe a influencia que tem
no desenrolar dos acontecimentos.
Menosprezaram-no e ultrajaram-no.

na circunstancia da sua criação ( o poema foi publicado em 1986 no livro As Pessoas na Ponte, antes, portanto da queda do Muro de Berlim), o poema no seu todo transcende-a. Ele convida-nos a reflectir em como há um eu e o cosmos que, se estiver sempre presente em nós, nos permite saber com segurança onde pertencemos e para onde vamos, sabendo sempre também, que as coisas não continuarão a ser como são (Brecht) diferentes nós, portanto, dos que

naquele caminho que fim não tem,
eternamente por palmilhar,
e acreditam na sua desfaçatez
que assim é na realidade.

Hiroshige pertence àquela pouco mais de meia-dúzia de artistas geniais que em Edo, hoje Tóquio, entre o meados do século XVIII e meados do século XIX, praticaram a gravura.

Género popular de grande consumo, a gravura sobre papel é no seu conjunto um vasto acervo de obras-primas de arte visual, desenvolvidas num quadro de codificação estrita e numa estética de profunda originalidade.

Tecnicamente cada gravura é obra de três artistas: o criador do desenho, a quem posteriormente a obra é atribuída, o gravador do desenho na madeira e o impressor encarregado de aplicar a cor sobre o papel. A sofisticação técnica do produto final no período áureo do inicio do século XIX, sobretudo no retrato, com a aplicação de mica em pó em algumas zonas da gravura e as nuances de brilho nas vestes dos personagens, acrescenta um requinte esquis a muitas destas gravuras.

Nesta gravura japonesa do período Edo, Ukiyo-e chamada, se o impacto estético é inescapável, a sua leitura emocional é bastante problemática para um ocidental. Repartindo-se por uma enorme variedade de assuntos, encontramos no entanto cinco grandes grupos de representação: retrato, cenas de quotidiano, paisagem, seres vivos (animais e plantas) e erótica, conhecida no ocidente por Shunga.

Na pintura de paisagem ou cenas de quotidiano, a que esta gravura de Hiroshige pertence, a ausência de perspectiva na composição e de escala entre os motivos, garante, para o nosso olhar, a novidade da representação. Depois chega-nos a incompreensão do representado, se forem para nós desconhecidos com algum detalhe tanto a história como a cultura japonesas.

Nota
Encontra o visitante curioso algumas gravuras japonesas da minha colecção no blog-arquivo Gravura Japonesa, cuja ligação pode ser encontrada na coluna da esquerda. Na página do bolg no Facebook pode ver-se um álbum com o conjunto das gravuras de Hokusai, outro mestre do mesmo período, 36 vistas do Monte Fuji.

Outros conjuntos temáticos destes mestres podem ser facilmente encontrados na net.