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Dürer - Estudo de mãos 02A
O mundo é sonho vão, que enleia a vida,
Quem nele está melhor, tem pior alma
E quem o desprezou, tem alma e vida.

Afasto-me hoje da prosaica poesia contaminada de quotidiano por onde tenho circulado, e dirijo-me para as auras poéticas da transcendência do ser, guiado pela inspiração de Frei Agostinho da Cruz (1540-1619).

Irmão mais novo do poeta Diogo Bernardes, fez-se monge capuchinho arrábido aos 20 anos e professou no conventinho da serra de Sintra, onde viveu até aos 65 anos. Por essa altura, em 1605, pediu para viver como eremita na serra da Arrábida.

Por vezes atormentada, a sua poesia é sobretudo uma contemplativa reflexão do homem que escreve num soneto que mais à frente transcrevo:

Perdi-me dentro de mim, como em deserto,

Ou num outro soneto:

Acostumado tinha o sofrimento / A um mal, que já de antigo não sentia,

Dantes somente amor me perseguia, / Agora amor, fortuna e pensamento.

Estes tormentos do mundo são mitigados com a fé religiosa onde o monge procura apoio, por exemplo nesta espécie de orações em soneto para protecção de sonhos pecaminosos ao deitar, e enlevo do dia, ao despertar:

Ao recolher à noite para dormir

Omnipotente Deus, que o sol criastes
Presidente da luz do claro dia,
E o governo da noite escura e fria
À inconstante lua encarregastes:

Por refugio das gentes ordenastes
O repousado sono que alivia
O diurno trabalho e agonia,
A que nossa natureza obrigastes.

Pois deste se aproveita o inimigo,
Representando em sonhos e alusões,
Com que a vossa majestade ofendamos:

Livrai-nos do mal dele, e do perigo
De seus ardis e torpes invenções,
Por que dormindo ainda vos sirvamos.

Ao levantar da cama

Graças vos dou, Senhor, que da escura
Noite e perigos dela me livrastes,
Deste dia ver a luz deixaste
A mim humilde vossa criatura.

Fazei que esta alma seja nele pura
E limpa de pecado, pois a amastes,
E para me salvar do céu baixastes,
Tomando a carne nossa a figura

Com todo coração, e de vontade,
Com a palavra, obra e pensamento
Vos sirva, louve e ame neste dia.

Louvando vossa eterna majestade,
A meu obrar dareis merecimento,
Para gozar no céu vossa alegria.

Na simplicidade da vida monástica e no encontro com a natureza, sentiu a proximidade e o conforto de Deus.

Façamos primeiro uma curta digressão por alguma da poesia inspirada na natureza da serra da Arrábida.

Na Serra D’Arrábida

No meio desta serra, onde se cria
Aquela saudade d’alma pura,
Que no duro penedo acha brandura,
Ardente fogo dentro n’água fria:

Ouço do passarinho a melodia,
Vejo vestir o bosque de verdura,
Variar-se no céu outra pintura,
Que em vários sentimentos me varia.

Pasmando de quam mal se gasta a vida
De quem na terra quer subir ao céu
Pois caminhar em fim ninguém duvida.

Menos da vida estreita que escolheu,
Dos seus mais escolhidos mais seguida,
Christo Jesu, que numa Cruz morreu.

Da contemplação a mesma

Dos solitários bosques a verdura,
Nas duras penedias sustentada,
N’esta serra, do mar largo cercada,
Me move a contemplar mais fermosura.

Que tem quem tem na terra mór ventura,
Nos mais altos estados arriscada,
Se não tem a vontade registada
Nas mãos do Criador da criatura?

A folha que no bosque verde estava,
Em breve espaço cai, perdida a flor,
Que tantas esperanças sustentava.

Por isso considere o pecador,
Se quando na pintura se enlevava
Não se enlevava mais no seu pintor.

Da poesia que deixou, alguma foi publicada parcialmente a partir de cancioneiros manuscritos, já bem entrado o século XVIII. O conjunto da obra aguarda ainda, ao que suponho, uma edição crítica.

No sabor maneirista destes sonetos encontramos o homem incerto de si, em suave conflito com as paixões terrenas e de pensamento virado para o além.

*
No silêncio da noite, em que vigio,
Desterrado da terra o pensamento,
No que dentro nesta alma represento,
Ora me aquento mais, ora me esfrio.

E pera temperar fogo com frio,
Em que me esfrio mais, ou mais me aquento,
Dos efeitos do puro sentimento
Na minha saudade choro e rio.

Depois destes contrários temperados
Na môr quietação, na môr brandura
Meus pensamentos ficam sepultados:

Temperada a frieza na quentura
Do meu divino amor tão apurados,
Que me deixam em paz na sepultura.

Chora os desvarios da sua desaproveitada mocidade

Ó montes altos, vales abatidos,
Verdes ribeiras de correntes rios,
Ora por baixo de bosques sombrios,
Ora por largos campos estendidos:

Onde mais claros vejo repetidos
Meus mal considerados desvarios
De pensamentos vãos, baixos e frios,
Emendados tão mal, quão mal sentidos.

Passei a mocidade sem proveito,
Antes contra meu Deus acrescentando
Culpas a quantas culpas tenho feito.

Cuja pena a velhice está purgando
Para passar da morte o passo estreito,
Se não se no seu sangue for nadando.

Da emenda

Concluído me tenho a mim comigo
De deixar o caminho que levava,
Vendo com razoes claras quanto errava
Em não me desviar do mais antigo.

Pois no trabalho seu, por môr perigo
Meu amigo consigo a mim me achava;
E quando no meu mal algum buscava,
Achava-me comigo sem amigo.

Agora dei a volta por caminhos
De solitários bosques enramados
De feras bravas, mansos passarinhos.

Que inda que entre os espinhos conversados,
Mais quero pés descalços entre espinhos,
Que dos homens humanos espinhados.

À sua inalterável confiança em Deus

Ancorou-me a velhice no remanso
Deste mar oceano, largo e brando,
Onde não tenho já que andar remando,
Nem querer noutra parte melhor lanço.

Neste repouso meu, em que me lanço,
E me levanto sempre desejando,
As forças se me vão acrescentando
Para alcançar um bem que não alcanço.

E tendo já no mar ferro lançado,
A confiança minha não se altera,
Por mais que o bravo mar vejo alterado.

Antes mais firma e forte preservera,
Que quem só no seu Deus tem ancorado,
Do bem se logra já, que ter espera.

À morte

Os correios da morte são chegados
Por caminhos antigos, impedidos
Mal com meus olhos, mL com meus ouvidos,
ML com meus pés, do chão mal levantados.

E mal, por não chorar bem meus pecados,
Que sendo sete, e cinco meus sentidos,
Por serem tantas vezes repetidos,
Impossível será serem contados.

Se não viera a morte acompanhada
De conta, que dar devo tão estreita,
Não fora tão penosa imaginada.

Mas a que vivo e morto tenho feita,
Tenho com meu Senhor na Cruz pregada,
Onde o ladrão contrito não se enjeita.

*

Contentamentos meus que já passastes,
Trocando a vida alegre, que vivia,
Por este mal, que passo, que um só dia
Me não deixam, depois que me deixastes.

Acabar me convém, pois acabastes
De dar-me o desengano, que encobria
Uma esperança vã, que me trazia
Contente, a qual também me já tirastes.

Os olhos, que Amor sempre guiava
Aonde eu tinha firme o pensamento,
Quando vossa presença os alegrava;

Agora chorarão vosso apartamento,
Que lhe tirou um bem, que os sustentava,
E só de vós ficou o sentimento.

Depois desta curta visita onde alguns momentos poéticos nos consolam, termino com a transcrição completa dos sonetos citados no inicio.

*

Acostumado tinha o sofrimento
A um mal, que já de antigo não sentia,
E posto que era grave, nele via
Que o uso diminui o sentimento.

Ordenaram-me os céus novo tormento
No tempo, que esperei nova alegria;
Dantes somente amor me perseguia,
Agora amor, fortuna e pensamento.

A lembrança dos bens, que noutro estado
Teve este peito meu, que em chamas arde,
Está levando sempre meu cuidado.

Choro a noite, a manhã, a sesta e a tarde,
Mas não devo estar desesperado,
Pois não se escusa a morte, inda que tarde.

*

Perdi-me dentro de mim, como em deserto,
Minha alma está metida em labirinto,
Continuo contradigo o que consinto,
Cem mil discursos faço, em nada acerto.

Velo seguro o dano, o bem incerto,
Comigo porfiando me desminto,
O que mais atormente, menos sinto,
O bem fogo, quando está mais certo.

E se as asas levanta o pensamento
Àquela parte onde está escondida
A causa deste vario movimento.

Transforma-se por não ser conhecida,
Por que quer apesar do sofrimento
Pôr as armas da morte em mão da vida.

Os sonetos transcritos, com modernização da ortografia, constam de Poesia Inéditas de Frei Agostinho da Cruz, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1924.

O desenho com as mãos em prece, que abre o artigo é do pintor alemão Albrecht Dürer (1471-1528), tal como o desenho de um velho com que encerro esta espiritual visita

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