Publico hoje o quingentésimo artigo no blog. Longe de veleidades de especialista, e apenas como homem comum que encontra prazer nas matérias do intelecto e do corpo, tenho preenchido o blog com artigos ao sabor do que ao espírito me ocorre, flanando nos acasos de leituras e acontecimentos.
No propósito de atribuir um significado especial a este artigo, de alguma maneira simbólico deste escrever, escolhi a Ode a Leucónoe de Horácio (65 a.C.- 8 a.C.), ode nº11 do Livro 1 das Odes, conhecida pelo seu último verso:
carpe diem, quam minimum credula postero.
Esta ode tem, ao longo dos séculos, despedaçado os esforços daqueles que defendem uma vida de sacrifício em prol de um além de maravilhas. E a ode dirigida a uma mulher, Leucónoe, diz tão só: não sabemos que vida nos espera para além da morte, os deuses sabem o que nos convém ainda que o não entendamos, por isso, aproveita o dia que passa.
Isto é dito na concisão do latim, numa forma poética que não cessa de encantar gerações e a que as traduções apenas trazem uma pálida aproximação.
Antes de passar às traduções, e para o leitor poder saborear o verso, aqui fica o original em latim:
1 Tu ne quaesieris — scire nefas — quem mihi, quem tibi
2 finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
3 temptaris numeros. Ut melius, quidquid erit, pati,
4 seu plures hiemes, seu tribuit Iuppiter ultimam,
5 quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
6 Tyrrhenum: sapias, vina liques, et spatio brevi
7 spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit invida
8 aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.
Começo uma volta pelas traduções que conheço, com um fragmento da ode inserido em Literatura de Roma Antiga.
Não indagues — sacrílego é sabê-lo — que fim nos tenham, a mim e a ti, destinado os deuses
…
melhor será suportar o que vier
…
sê sábia, coa o vinho e encerra em curto espaço a longa esperança.
Ainda estamos a falar, e já o tempo malfazejo nos terá escapado:
colhe o hoje e preocupa-te o menos possível com o amanhã
Continuemos neste percurso com a versão, poeticamente conseguida, de David Mourão-Ferreira:
Não procures, Leucónoe — ímpio será sabê-lo —,
que fim a nós os dois os deuses destinaram;
não consultes sequer os números babilónicos:
melhor é aceitar! E venha o que vier!
Quer Júpiter te dê inda muitos Invernos,
quer seja o derradeiro este que ora desfaz
nos rochedos hostis ondas do mar Tirreno,
vive com sensatez destilando o teu vinho
e, como a vida é breve, encurta a longa esp’rança.
De inveja o tempo voa enquanto nós falamos:
trata pois de colher o dia, o dia de hoje,
que nunca o de amanhã merece confiança.
Sigo com duas traduções a que chamaria, talvez, filológicas, pela sua tentativa de devolver em português o significado literal das expressões do poema original.
Primeiro, a mais antiga, da ilustre e operosa professora Maria Helena da Rocha Pereira:
Não pudemos, Leucónoe, saber — que não é lícito — qual o fim
que os deuses a ti ou a mim quererão dar,
nem arriscar os cálculos babilónios. Quão melhor é sofrer o que vier,
quer sejam muitos os invernos que Jove nos der, quer seja o último
este, que agora atira o Mar Tirreno contra as roídas rochas.
Sê sensata, filtra o teu vinho e amolda a curto espaço
uma longa esperança. Enquanto falamos, terá fugido o invejoso tempo.
Colhe a flor do dia, pouco fiando do que depois vier a suceder.
Agora a recente tradução de Pedro Braga Falcão substancialmente devedora da anterior, sobretudo nos versos 6 e 7:
Tu não perguntes ( é-nos proibido pelos deuses saber) que fim a mim, a ti,
os deuses deram, Leucónoe, nem ensaies cálculos babilónicos.
Como é melhor suportar o que quer que o futuro reserve,
quer Júpiter muitos invernos nos tenha concedido, quer um último,
este que agora o Tirreno mar quebranta ante os rochedos que se lhe opõem.
Sê sensata, decanta o vinho, e faz de uma longa esperança
um breve momento. Enquanto falamos, já invejoso terá fugido o tempo:
colhe cada dia, confiando o menos possível no amanhã.
Colhendo a lição das traduções anteriores, termino a propor uma minha versão para tão intemporal poema:
Não indagues, Leucónoe — sacrílego é sabê-lo — que fim, a mim e a ti,
os deuses destinaram, nem astrológicas(*)
previsões procures. Melhor é suportar o que vier,
quer muitos invernos Júpiter nos dê, quer seja o último,
este, que agora desfaz nas gastas rochas, as ondas do mar Tirreno.
Sê sensata, decanta o vinho, amolda à vida breve
a longa expectativa. Nós falamos, e o invejoso tempo voa:
colhe cada dia, acredita pouco no que amanhã virá.
(*) nec Babylonios traduzível por cálculos babilónicos ou babilónios, refere-se à arte da astrologia desenvolvida na Babilónia, e muito em voga entre os romanos à época, daí a versão que preferi.
Noticia bibliográfica
Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da Poesia Europeia I, Revista Colóquio Letras, nº163
Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira in ROMANA, 6ªedição aumentada, Guimarães, 2010
Tradução de Pedro Braga Falcão in Horácio, Odes, Livros Cotovia, 2008
Fragmento in Literatura de Roma Antiga, Direcção de Mario Citroni, FCG, 2006. A revisão da tradução da obra é de Walter de Sousa Medeiros
Duas notas sobre a ilustração do artigo
Só podiam ser obras de Picasso dando conta do prazer de viver, as ilustrações para o artigo. Pela obra do artista, uma permanente alegoria desse prazer, e pelo meu gosto pessoal, que nesta obra encontro fonte de recorrente felicidade. E nela, o hedonismo da praia, o mar, o corpo ao sol, afinal o prazer do hoje, na sedução do beijo da amada que abre o artigo, e a inocente brincadeira familiar com que o fecho.
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Incrível, meus parabéns!
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Aceite um comovido obrigado pelo comentário num artigo que me deu especial prazer a escrever. Carlos Mendonça Lopes
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