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Os livros têm destes acasos...
O Outono mostrou-se hoje em Lisboa, quando já vai avançado no calendário. Para entreter a chuva que caía tirando-me a vontade de sair, procurei um policial como remédio.
Nem todas as traduções de policiais são legíveis, algumas há que precisamos largar à segunda página, e por isso vasculhei por um qualquer título em tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, laboriosa tradutora a quem devo largas horas de prazer de leitura em português, graças a traduções escorreitas e tanto quanto possível, fieis ao original. Calhou encontrar um livro com epígrafe do Wozzeck (Alban Berg), coisa assaz rara, que me espevitou a curiosidade.
Termina o livro com um poema de Guillaume Apollinaire (1880-1918), Automne malade, perfeitamente adequado ao dia e por isso o transcrevo numa tradução da poetisa Maria Gabriela Llansol (1931-2008).
Outono mortiço e adorado
Morrerás quando o furacão soprar nos rosais
Quando nos vergéis
Tiver nevado
Pobre outono
Morres em brancura e em riqueza
De neve e de frutos maduros
No fundo do céu
Planam gaviões
Sobre os nixes ingénuos e anões de cabelos verdes
Que nunca amaram
Nas orlas de lá longe
Os veados bramiram
Oh! estação não sabes quanto gosto dos teus rumores
Os frutos caindo sem serem apanhados
O vento e a floresta que choram folha a folha
Todas as suas lágrimas no outono
As folhas
Que pisam
Um comboio
Que passa
A vida
Que se vai
Perante esta tradução vale a pena conhecer o original, e para os leitores que dominem o francês, aqui fica:
Automne malade
Automne malade et adoré
Tu mourras quand l’ouragan soufflera dans les roseraies
Quand il aura neigé
Dans les vergers
Pauvre automne
Meurs en blancheur et en richesse
De neige et de fruits mûrs
Au fond du ciel
Des épreviers planent
Sur les nixes nicettes au cheveux verts et naines
Qui n’ont jamais aimé
Aux lisières lointaines
Les cerfs ont bramé
Et que j’aime ô saison que j’aime tes rumeurs
Les fruits tombant sans qu’on les cueille
Le vent et la forêt qui pleurent
Toutes leurs larmes en automne feuile à feuille
Les feuilles
Qu’on foule
Un train
Qui roule
La vie
S’écoule
O poema de Llansol é quase um novo poema, e as subis alterações acabam por criar em português uma magia nova que o francês talvez nem tenha. Apenas um exemplo:
Aux lisières lointaines / Nas orlas de lá longe
A tradução de Fernanda Pinto Rodrigues no policial (Tsing-Boum de Nicolas Freeling) é fragmentada, pois limita-se a traduzir o que do poema o romance contém. No entanto, como é tão mais fiel em português, aqui a arquivo.
Para o exemplo citado atrás, traduz Fernanda Pinto Rodrigues:
Aux lisières lointaines / Nos bosques longínquos
o que mostra eloquentemente a diferença entre traduzir e escrever poesia em tradução, parece-me.
Vejamos então a tradução próxima do literal:
Outono doente e adorado
Morrerás quando a borrasca soprar nos roseirais
Quando tiver nevado
Nos pomares
Pobre Outono
Morres em brancura e opulência
De neve e frutos maduros…
Alto no céu
Pairam gaviões
…
Nos bosques longínquos
Os cervos bramaram…
Como eu amo, ó estação, como amo os teus rumores
Os frutos a cair sem serem colhidos
O vento e a floresta a chorar
Todas as lágrimas no Outono, folha a folha
…
Noticia bibliográfica
A tradução de Maria Gabriela Llansol e transcrição do original do poema encontram-se em MAIS NOVEMBRO QUE SETEMBRO, edição bilingue de poemas de Guillaume Apollinaire publicado por Relógio d’Água, Lisboa 2001
A tradução de Fernanda Pinto Rodrigues encontra-se em Herança de um Inferno, nº289 da colecção Vampiro, Livros do Brasil, Lisboa, s/d.
Infelizmente, esta grande tradutora, morreu em outubro de 2013. O mais impressionante é o fato de uma pessoa do talento e do gabarito desta senhora não ter um verbete sequer em lugar algum (Wikipedia, por exemplo). Logo ela a quem, como diz muito bem você, “devemos largas horas de prazer”. Nem uma foto, um dado biográfico sequer. Mundo triste e estranho. R.I.P. senhora Fernanda.
E muito obrigado por esta singela lembrança e por esta homenagem a esta grande tradutora, caro “vicio da poesia”.
Cassio Queiros (do Brasil)
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Como traduzir poemas é poesia, permita-me deixar aqui uma terceira versão do poema:
Outono enfermo
Outono amado e cheio de ais
Morrerás quando o furacão soprar nos roseirais
Quando nos pomares
A neve voar
Pobre outono
Morres de brancura e riqueza
De neve e frutos maduros
No alto do céu
Gaviões que planam
Sobre as ondinas ingénuas de cabelo verde e anãs
Que nunca amaram
Nas orlas distantes
Os veados bramaram
E quanto gosto, oh estação, quanto amo os teus acalantos
Os frutos caindo sem ninguém que os colha
O vento e a floresta em pranto
Com as lágrimas todas no outono folha a folha
As folhas
Pisadas
Um comboio
Lançado
A vida
Passada
Guillaume Apollinaire
Trad. Luís Lima
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