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E eis quanto resta do idílio acabado,

– Primavera que durou um momento…

Como vão longe as manhãs do convento!

– Do alegre conventinho abandonado…

 

Tudo acabou… Anémonas, hydrângeas,

Silindras, – flores tão nossas amigas!

No clautro agora viçam as ortigas,

Rojam-se cobras pelas velhas lágeas.

 

Sobre a inscrição do teu nome delido!

– Que os meus olhos mal podem soletrar,

Cansados… E o aroma fenecido

 

Que se evola do teu nome vulgar!

Enobreceu-o a quietação do olvido.

Ó doce, ingénua, inscrição tumular.

Prometi a mim mesmo escrever no blog apenas sobre a poesia de que gosto e por isso resisto há mais de um ano a escrever sobre a poesia de Camilo Pessanha (1867-1926). Mas os poemas chamam-me, apesar da recusa que em mim sinto sobre um sentir que me é estranho, como por vezes me acontece com a poesia assinada Álvaro de Campos.

Foi a fotografia que encima o artigo, e fiz há semanas no cemitério do Alto de S. João em Lisboa, que irresistivelmente trouxe ao blog esta poesia de forma mais circunstanciada. Antes apenas tinha transcrito um poema de Camilo Pessanha num artigo brincadeira: Ambrosio, tenho um desejo de poesia, onde efectivamente se brincava também com Tabacaria. Mas vamos a Pessanha.

A poesia de Camilo Pessanha (1867-1926) ressuma lassidão. Não a lassidão feliz do desejo satisfeito nem a lassidão saborosa depois do esforço físico, mas a lassidão do deixar andar entregue à inércia da vontade. Será paradigma desta impressão o poema CREPUSCULAR .

CREPUSCULAR

 Há no ambiente um murmúrio de queixume,

De desejos d’amor, d’ais comprimidos…

Uma ternura esparsa de balidos

Sente-se esmorecer como um perfume.

 

As madressilvas murcham nos silvados

E o aroma que exalam pelo espaço

Tem delíquios de gozo e de cansaço,

Nervosos, femininos, delicados.

 

Sentem-se espasmos, agonias d’ave,

Inapreensiveis, mínimas, serenas…

-Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas,

O meu olhar no teu olhar suave.

 

As tuas mãos tão brancas de anemia,

Os teus olhos tão meigos de tristeza…

– É este enlanguescer da natureza,

Este vago sofrer do fim do dia.

Há uma falta de luz que entristece mesmo quando não nos comovemos com as palavras dum sofrer sem remédio. Sendo poeticamente notáveis os poemas de Clepsydra, alguns são inquestionáveis obras-primas na forma como o assunto se desenvolve conduzindo o leitor pela emoção quando o poeta fala de si e do seu (de)encontro com o mundo.

Porque o melhor, enfim,

É não ouvir nem ver…

Passarem sobre mim

E nada me doer!

 

– Sorrindo interiormente,

Co’as pálpebras cerradas,

Às águas da torrente

Já tão longe passadas. –

 

Rixas, tumultos, lutas,

Não me fazerem dano…

Alheio às vãs labutas,

Às estações do ano.

 

Passar o estio, o outono,

A poda, a cava e a redra,

E eu dormindo um sono

Debaixo duma pedra.

 

Melhor até se o acaso

O leito me reserva

No prado extenso e raso

Apenas sob a erva

 

Que Abril copioso ensope…

E, esvelto, a intervalos

Fustigue-me o galope

De bandos de cavalos.

 

Ou no serrano mato,

A brigas tão propício,

Onde o viver ingrato

Dispõe ao sacrificio

 

Das vidas, mortes duras

Ruam pelas quebradas,

Com choques de armaduras

E  tinidos de espadas…

 

Ou sob o piso, até,

Infame e vil da rua,

Onde a torva ralé

Irrompe, tumultua.

 

Se estorce, vocifera,

Selvagem nos conflitos,

Com ímpetos de fera

Nos olhos, saltos, gritos…

 

Roubos, assassinatos!

Horas jamais tranquilas,

Em brutos pugilatos

Fracturam-se as maxilas…

 

E eu sob a terra firme,

Compacta, recalcada,

Muito quietinho. A rir-me

De não me doer nada.

Poemas de amor e morte, na sua maior parte, é um cheiro a flores apodrecidas que deles se exala, deixando-nos o amargo de uma existência inútil, no efémero de uma floração acontecida fora de tempo.

Floriram por engano as rosas bravas

No inverno: veio o vento desfolhá-las…

Em que cismas, meu bem? Porque me calas

As vozes com que há pouco me enganavas?

 

Castelos doidos! Tão cedo caístes!…

Onde vamos, alheio o pensamento,

De mãos dadas? Teus olhos, que um momento

Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

 

E sobre nós cai nupcial a neve,

Surda, em triunfo, pétalas, de leve

Juncando o chão, na acrópole de gelos…

 

Em redor do teu vulto é como um véu!

Quem as esparze – quanta flor! -, do céu,

Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

Se de Camilo Pessanha quisesse escolher apenas um poema, elegeria este soneto [ Passou o outono já, já torna o frio…]. Ao lê-lo percorre-nos um arrepio gelado, mas corre nele a água limpida por onde se escoa a melancolia, e nela segue a amada morta, permitindo um novo recomeçar, diria eu.

Passou o outono já, já torna o frio…

– Outono de seu riso magoado.

Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado…

– O sol, e as águas límpidas do rio.

 

Águas claras do rio! Águas do rio,

Fugindo sob o meu olhar cansado,

Para onde me levais meu vão cuidado?

Aonde vais, meu coração vazio?

 

Ficai, cabelos dela, flutuando,

E, debaixo das águas fugidias,

Os seus olhos abertos e cismando…

 

Onde ides a correr, melancolias?

– E, refractadas, longamente ondeando,

As suas mãos translúcidas e frias…

Esta versão dos poemas foi transcrita da edição de CLEPSYDRA preparada por Gustavo Rubim e publicada como anexo aos nºs 155/156 da revista COLÓQUIO/LETRAS.