Estava lindo no cemitério, hoje. Caminhava para as quatro da tarde. O sol descia para ocidente e derramava sobra a copa das árvores uma luminosidade diáfana, colocando em esplendor dourado o amarelecidos das folhas no Outono. Misturava-se nesta folhagem, onde uma ligeira brisa punha cintilações, o voluptuoso verde dos ciprestes, criando uma harmonia de sufocante beleza contra um céu num azul de Tiepolo, onde, em fundo e ao longe, algumas nuvens como que pintadas em branco e cinzento fechavam o quadro. Do chão erguiam-se as cruzes, anjos e santos em pedra que encimam aqueles centenários jazigos, transmitindo na perenidade da rocha a atmosfera do repouso eterno.

É difícil a nossa relação de ocidentais com a morte. Há o tempo do luto, mas há depois, e enquanto vivemos, o tempo da memória. Seremos vivos enquanto permanecemos na memória dos outros.

Viva, faria hoje anos a minha primeira mulher, e em lembrança deste aniversário deixei junto às suas cinzas uma rosa amarela. Aproveitei o sossego e o esplendor da tarde para reencontrar uma harmonia às vezes esquiva no passar dos dias.

Passaram quarenta anos desde que no seu primeiro aniversario depois de nos conhecemos lhe ofereci rosas amarelas e um disco com a peça Momente de Stockausen, que finalmente tem primeira audicao em Portugal esta semana na Fundação Gulbenkian. Nas palavras do compositor trata-se praticamente de uma opera sobre a Mãe Terra rodeada pelos seus filhos. Momente, a composição musical, pensa-se como o entendimento de que a eternidade não começa no fim dos tempos mas é atingível em cada momento.

A peça, para soprano, coro e orquestra, possui textos cantados de origens diversas onde se encontram fragmentos de  William Blake, Bronislaw Malinowski e outros.

São os caminhos da arte cruzados com a memória que aqui percorro, e na música encontro, tantas vezes, a direcção por onde seguir.

Nota

Pintura de Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770) titulada Uma alegoria com Vénus e o Tempo, pintada em 1754-58, e pertença da National Gallery de Londres.