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Há longo tempo ausente do blog, a poesia do século XVIII, ei-lá que regressa pela voz de Paulino Cabral de Vasconcelos (1719-1789), Abade de Jazente, numa moderada sátira em forma de soneto, à carestia da vida

A trinta e cinco reis custa a pescada:

O triste bacalhau a quatro e meio:

A dezasseis vinténs corre o centeio:

Do verde a trinta reis custa a canada.

 

A sete, e oito tostões custa a carrada

Da torta lenha, que do monte veio:

Vende as sardinhas o galego feio

Cinco ao vintém; e seis pela calada.

 

O cujo regatão vai com excesso,

Revendendo as pequenas iguarias,

Que da pobreza são todo o regresso.

 

Tudo está caro: só em nossos dias,

Graças ao Céu! Temos em bom preço

Os tramoços, o arroz e as Senhorias.

Não só a carestia da vida é objecto de meditação do poeta.

Expandindo a reflexão à interrogação sobre o sentido da vida temos a pergunta:

De que serve o viver, se tanto custa?

desenvolvida neste soneto:

De que serve o viver, se tanto custa?

É toda uma tormenta a nossa idade;

Louca na infância, vâ na mocidade,

E cheia de aflições na mais robusta.

 

Um chora, outro lamenta, outro se assusta

Da fortuna à mais leve tempestade;

E se chega a velhice, é sem piedade

Submetida ao rigor da sorte injusta.

 

Parece que por seu divertimento

O Céu nos faz penar, inda que santo,

Sem nos deixar de alívio um só momento.

 

Valha-nos Deus! Se toda a vida é pranto,

Se acaba só na morte o seu tormento,

De que serve viver, se custa tanto?

Não fica por aqui a meditação do poeta consubstanciada naquele Valha-nos Deus! Se toda a vida é pranto,

e vamos agora ao encontro dos motivos porque Tormento é toda a vida, é toda enganos:

Sem causa a infância ri, sem causa chora:

Incauta se despenha a mocidade;

Sacode o jugo, e nela a liberdade,

A caça, o jogo, o amor, tudo a namora.

 

Das honras o varão se condecora;

Tudo é nele ilusão, tudo vaidade:

Junta tesouros a avarenta idade;

Diz mal do nosso, e ao tempo andado adora.

 

Tormento é toda a vida, é toda enganos:

Quando uns afectos vence a novos corre,

E tarde reconhece os próprios danos:

 

Porque enfim se a prudência nos socorre,

Ditada na lição dos longos anos,

Quando se sabe, então é que se morre.

Mas eis que uma pulga põe fim a tanta filosofia:

Às vezes se não durmo, o pensamento

Deixando o corpo sobre a cama quente,

Me leva mais ousado, que prudente,

Dos astros a medir o movimento.

 

Peso, calculo, meço, e observo atento,

Quantos globos encerra o Céu luzente:

Contemplo os turbilhões, e finalmente

Me transporto até sobre o firmamento.

 

Descartes lá descubro: e nesse espaço,

Que existência só tem na fantasia,

Também meus orbes risco, e mundos faço.

 

E eis que vem com mais certa geometria

Uma pulga, e me morde no cachaço;

Vou-me arranhar; e adeus filosofia.

Nota e noticia bibliográfica:

Nesta pequena visita à obra de Paulino Cabral de Vasconcelos, aproveito para transcrever o PROLOGO que acompanha o 1º volume das Poesias na sua 1ªedição, volume onde todas as poesias aqui transcritas se encontram, e que o moderno editor da obra, em 1983, para a INCM, achou por bem não transcrever.  Por outro lado, melhor teria andado esse editor se tivesse poupado à posteridade o comentário que antepôs á referida edição e que titulou: A INSIGNIFICÂNCIA DO ABADE DE JAZENTE.

Quando li este título pensei tratar-se de uma ironia a acompanhar alguma poesia do Abade. Mas não, leva-se a sério e expende das páginas 9 a 27 da referida edição INCM as considerações que melhor fizera guardar para si. Para terdes uma ideia sobre que fala o organizador, depois de circundar vastas matérias, remata a sua conversa com o seguinte parágrafo:

A insignificância do Abade de Jazente pressente-se na monotonia com que uma perspectiva de fim de discurso é entrevista: ele mostra-nos, como algumas décadas depois a gramática histórica iria mostrar, que as palavras também morrem. Mas porque no-lo mostra quando escreve, contenta-nos com o espectáculo das palavras antes de morrer.

Valha-nos a poesia!

Vamos então ao prometido PROLOGO do editor da obra em 1786, Bernardo Antonio Farropo.

PROLOGO

O Merecimentp, que se encontra nos excellentes versos do Paulino Cabral de Vasconcellos, Abbade de Jazente, e a controversia exquisita com Theodoro de Sá Coutinho, me picou a curiosidade de ajuntar as suas obras. Truncadas, e dispersas eu mendiguei com indizivel trabalho tão bellas composições: e com igual difficuldade persuadi a seu Author a que as reconhecesse, e em partes retocasse as informes, e erradas copias, que as desfiguravaõ.

Appeteci ultimamente adornar a minha estante com a estampa deste genio raro: e bem que alguns Sonetos admiraveis se excluiraõ da collecçaõ; em a fazer pública eu me persuado, que lisongearei aos curiosos de bom gosto, e darei gloria á nossa Patria neste seu Alumno.

Conservei a ortografia original.

Os sonetos foram retirados do primeiro volume das Poesias de Paulino Cabral de Vasconcelos, Abbade de Jazente, publicadas no Porto, na Officina de Antonio Alvarez Ribeiro no anno de 1786, com licença da Real Mesa Censória.

Modernizei a ortografia, retirei a maiúscula a alguns substantivos, e conservei a pontuação embora esta pareça um pouco anacrónica hoje, mas não dificulta a leitura.

As poesias do Abade de Jazente foram publicadas em 1ªedição em 2 volumes, tendo o 2º volume sido publicado um ano mais tarde, em 1787, e é hoje raríssimo.