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Recolhido ao fresco do ar condicionado neste verão que nos abrasa, leio poesia, e aguardo o que aconteceu ao poeta:
Junto a um dia de verão / Fiquei deitado a sonhar. / E de longe a luz, então, / Veio dentro de mim brilhar.
Infelizmente não me aconteceu nenhuma epifania como relata o poema:
Súbita flauta possivel / Em notas sem melodia / Brota, do fundo invisivel / De meu ser…
e continuo com a urgência do quotidiano, numa perfeita sintonia com o maravilhoso tempo que vivemos. Mas bem gostava de num sobressalto sentir como o poeta:
Sou outro ser. / Meus sentidos outros já. / A mão que oculta meu ver / Divina cegueira dá. / Sou musica vinda dos céus, / Um tom dos dedos de Deus.
O poeta é Fernando Pessoa na pele de Alexander Search, o heterónimo pouco considerado. Ressoam no poema os primórdios do que viria a ser o panteísmo de Alberto Caeiro, aqui ainda confuso:
A poeira que ao sol baila / Pode ouvir-se sussurrar. / Tudo é expressão, tudo fala.
Deixo-vos com o poema na integra.
ÊXTASE DE VERÃO
Junto a um dia de verão
Fiquei deitado a sonhar.
E de longe a luz, então,
Veio dentro de mim brilhar.
Brilho vero e irreal
Por certo espiritual.
O interior então vi
Do verão, da terra, da aurora.
Os rios a correr ouvi
De Dentro. Nasci outrora
P’ra ver, em cada mistério,
Como Deus é tudo, inteiro.
A poeira que ao sol baila
Pode ouvir-se sussurrar.
Tudo é expressão, tudo fala.
A vista pode escutar.
Das coisas perdi visão.
Ideias, aladas são.
Os restos de horas passadas
Vogam em barcos à deriva
Cobertas de flores caladas,
Com meu sonho na descida
Até margens de mistério –
Este dia quente e eu.
E algo de um cobiçar,
Mas dum desejo diferente,
Sensação de algo faltar
Sem chegar a estar carente,
Mas que se vai dissolver
Antes que doa o prazer.
Um brilho de sombra tecido
Deste dia e de meu ser,
Água de fulgor trazido
Apenas para se ver,
Hiato, pausa, obscuro
Olhar a orla de tudo,
Súbita flauta possivel
Em notas sem melodia
Brota, do fundo invisivel
De meu ser, sua magia
E esvai-se do meu sentido
No pensamento perdido.
E olhai! Sou outro ser.
Meus sentidos outros já.
A mão que oculta meu ver
Divina cegueira dá.
Sou musica vinda dos céus,
Um tom dos dedos de Deus.
E como um principe coroado
Sinto orgulho e medo agora,
De céu e terra trajado.
A alma por dentro e fora,
É sol até aos confins.
Sonho mãos de serafins.
O poema, A SUMMER ECSTASY, foi traduzido por Luisa Freire e publicado a primeira vez pela tradutora em 1995, na edição bilingue da Poesia Inglesa de Fernando Pessoa. Traz o nº48 do livro THE MAD FIDDLER/O RABEQUISTA MÁGICO.
O livro foi editado por LIVROS HORIZONTE, LDA em 1995, e penso que a superlativa tradução dos poemas terá sido premiada por um dos prémios que de vez em quando fazem justiça ao trabalho que o merece.