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“Pesa um silencio d’alto sobre o mundo” e o poeta submisso ao milagre da vida, ergue-nos esta mulher símbolo, sem forma, sem beleza outra que ser a maravilha da origem do mundo
A mulher grávida
Eu sou a mulher pejada.
Minha boca apetecida,
Com outra boca colada,
Deu beijos para dar Vida.
Em mim é santo o Desejo,
É santo por ser fecundo:
Puz toda a alma num beijo,
E fui a origem do mundo.
Olhai: caminho por entre
Todo o povo sem receio,
Pois trago um filho no ventre
E uma fonte em cada seio.
Quem sentir vida tam alta
Não se furte, não a esconda;
Vêde-a … em meu ventre se exalta,
Sobe toda numa onda.
Um filho todas as vezes,
Que é de mãe enternecida,
Trá-lo o ventre nove meses
E o coração toda a vida.
Que imenso poder eu tenho
– Dar vida por ser o amor;
Não há poeta tamanho,
Nem génio mais criador!
E por meu ventre sagrado
Vou falar: escutai bem.
Fala o verbo revelado
No meu instinto de mãe.
Eu vejo para além da vista,
Ouço pra além dos ouvidos:
Oh! Que terra nunca vista,
Que heróis jamais concebidos!
Ouço em mim vozes estranhas,
A minha Alma deita luz …
Trago nas minhas entranhas
Outro menino Jesus.
Meu Filho amostra-me a face,
Faze-te Aurora nascida,
Embora a luz me queimasse,
Inda que eu perdesse a Vida.
Sou o Céu da Madrugada,
A minha carne anda em brilho;
Sinto-me ébria de Alvorada
Rompe o Sol: nasce o meu filho!
O poema é de Jaime Cortesão (1884 – 1960) e foi publicado em 1914 no livro Glória Humilde.
A poesia de Jaime Cortesão ressuma uma sensualidade embrulhada por vezes numa aura mística ligando o sexo ao transcendente da condição humana.
Em Glória Humilde há um esforço de aproximação e ligação à natureza, onde se procura dar a ver o carácter sagrado dos gestos essenciais da vida. Mas é sobretudo no livro Divina Voluptuosidade fazendo supor ao leitor a eternidade no paraíso como uma espécie de orgasmo perpétuo, que chegamos ao carácter sagrado do sexo, de alguma forma aflorado neste canto à gravidez enquanto origem do mundo.