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Fazendo parte dos 15 textos que compõem as prosas poéticas Galáxias,  escritas entre 1963 e 1976, circuladô de fulô… escrita em 1965,  juntamente com e começo aqui e meço aqui … , encontra-se entre o melhor da poesia de Haroldo de Campos (1929-2003) e para alguns, entre os melhores poemas brasileiros de sempre.

Em 1959, Haroldo de Campos, então com 29 anos, viajou pela Europa, deixando o Brasil pela primeira vez. Viagem de formação que incluiu entre outros eventos, uma visita a Stockhausen em Colónia, então chefe de fila da vanguarda musical europeia, e a Ezra Pound em Rapallo.

De regresso ao Brasil pelo nordeste, visitou outras cidades nordestinas antes do retorno a S. Paulo. Segundo o próprio, este percurso final da viagem foi  uma descoberta do Brasil por via do mundo.

A memória desta viagem pelo outro Brasil foi mais tarde evocada em circuladô de fulô… que aqui arquivo na fragmentada versão do texto cantada por Caetano Veloso, a qual repete em refrão texto que não se encontra repetido no poema original.

circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de
fulô e ainda quem falta me dá


soando como um shamisen e feito apenas com um arame
tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no
pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música
não podia porque não podia popular aquela música se não
canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e
no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais
megera miséria física e doendo doendo como um prego
na palma da mão um ferrugem prego cego na
palma espalma da mão coração exposto como um nervo
tenso retenso um renegro prego cego durando na palma
polpa da mão ao sol


[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu
circuladô de fulô e ainda quem falta me dá]

 


o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro
da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia
azeitava o eixo do sol

 

[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu
circuladô de fulô e ainda quem falta me dá]

 


e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie
desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe
me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que
no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me
reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se
verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz
cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que
me ensinou já não dá ensinamento


[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu
]

Caetano Veloso canta circuladô de fulô

circuladô de fulô… é um tributo à tradição de ministreis nordestinos que a musica capta na perfeição. Os primeiros versos, cantados depois como refrão, parecem ser uma citação directa de alguma canção ouvida no local por Haroldo de Campos.  Sobre ela parece nada se saber.

Os poemas podem encontrar-se in Os melhores Poemas de Haroldo de Campos, 3ª ed. S. Paulo: Global, 2001

Nota:

Shamisen: é uma espécie de alaúde japonês.

Gueixa tocando Shamisen para convidados, Japão, sec. XVIII