É sobre o que não aconteceu o poema de António Manuel Couto Viana (1923-2010), Saudade de um corpo:
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Arrependido? Sim: preferia recordar
Um corpo saciado, a um corpo reprimido;
O momento fremente de o despir e enlaçar
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Com o proverbial lirismo de tanta da sua poesia, avançamos na leitura do poema seguindo a delicadeza de gestos e encanto de um desejo adolescente até conhecer o desenlace-pretexto da memória que se faz poema:
Saudade de um corpo
Os nossos corpos tinham não sei que primavera,
Quando em noites de Maio, na influência da lua,
Florescia entre nós um silêncio de espera,
Se a minha mão pousava na tua.
Tímidos e febris, só os sentidos falavam,
Até que a tua voz, expulsando o torpor,
Receosa, talvez, de uns passos que passavam,
Se punha a divagar sobre a noite e o calor.
Nunca nos acalmou a frescura de um beijo;
É feliz a amizade! E o amor é tão sério
Que cada um guardou, para si, o desejo,
Temendo ver voar a asa do mistério.
Arrependido? Sim: preferia recordar
Um corpo saciado, a um corpo reprimido;
O momento fremente de o despir e enlaçar
E de o sentir ranger, como range um vestido.
É caso para parafrasear Camões:
Mais vale experimentá-lo… que transportar pela vida um desejo insaciado.
O poema foi transcrito de O Coração e a Espada, Edições Távola Redonda, 1953.
Na abertura vê-se com prazer a imagem de uma pintura de Pierre-Narcisse Guérin (1774-1833).