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Leitores assíduos do blog já saberão que gosto de poemas que captam a fugacidade da vida, a revelação do instante e seu efémero, dando tantas vezes sentido ao vazio dos dias, fazendo entrever outra vida possível, outros amores. Assim o poema de Carlito Azevedo (1961) A uma passante pós-baudelairiana que a seguir transcrevo.
A uma passante pós-baudelairiana
Sobre esta pele branca
um calígrafo oriental
teria gravado
sua escrita luminosa
— sem esquecer entanto
a boca: um ícone em rubro
tornando mais fogo
o céu de outubro
tornando mais água
a minha sede
sede de dilúvio —
Talvez este poeta afogado
nas ondas de algum danúbio imaginário
dissesse que seus olhos são
duas machadinhas de jade
escavando o constelário noturno
(a partir do que comporia
duzentas odes cromáticas)
mas eu que venero mais que o ouro-verde raríssimo
o marfim em alta-alvura
de teu andar em desmesura sobre
uma passarela de relâmpagos súbitos
sei que tua pele pálida de papel
pede palavras de luz
Algum mozárabe ou andaluz decerto
te dedicaria um concerto
para guitarras mouriscas e
cimitarras suicidas
Mas eu te dedico quando passas
me fazendo fremir
(entre tantos circunstantes, raptores fugidios)
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios.
de Collapsus Linguae, Lynx, Rio de Janeiro, 1991.
É inevitável ao ler este poema ouvir cantar-nos no ouvido o balancear daquela Garota de Ipanema descrita por Vinicius de Moraes (1913-1980), e para a eternidade posto em música por António Carlos Jobim (1927-1994), ocupando todo o espaço da imaginação possível, deixando quem as vê passar, pós-baudelairianas, ou outras, entre tiroteios de silêncios e salvas de arrepios, como brilhantemente remata Carlito Azevedo a concluir o seu poema. Como curiosidade refiro que este Garota de Ipanema foi composto por alturas do nascimento de Carlito Azevedo. E assim, uma vez mais, assistimos ao eterno retorno das paixões dos homens e da sua poesia. É óbvio que, pelo título, e argumentação, o poema de Carlito Azevedo já apelava a uma filiação/descendência ancorada a toda a tradição lírica do mundo com influência na cultura ocidental, associando-o à universalidade e intemporalidade do frémito da beleza feminina nos homens.
Abre o artigo a imagem de uma pintura, acrílico s/tela, de Brian Elston, Nude 580 de 2008, de colecção particular.