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Surpreendi-me um destes dias com um anúncio de televisão a publicitar um lubrificante íntimo dando voz ao que a experiência mostra e tantas vezes é causa de insucesso: a conveniência ocasional de lubrificação quando do acto sexual, e a sua necessidade obvia a partir de certa idade.
Lubrificantes e o rodar dos tempos levam-me a um epigrama de Apollinaire (1880-1918), A vaselina, que hoje transcrevo em versão de José Paulo Paes.
Retrata o poema uma situação de solicitude frequente de farmacêutico para cliente. O cliente no poema tentou prevenir-se e evitar a eventualidade do recurso à margarina, socorro dos protagonistas no filme O Último Tango em Paris, como talvez algum leitor relembre.
O diálogo captado no poema transporta-me a memória para uma experiência sobre o embaraço farmacêutico perante compras associadas à actividade sexual.
Os tempos nem sempre foram de tanta franqueza pública no que a estas matérias respeita, e se a venda de preservativos está espalhada por todo o lado, na minha juventude era exclusiva de farmácias. E a sua compra motivo de embaraço por vezes. Tendo sentido desconforto com uns preservativos certa vez comprados, fui à farmácia procurar o que me pudesse servir melhor. Chegada a minha vez, fui atendido pela farmacêutica, senhora de alguma idade. Eu, um jovem, e não exactamente embaraçado, perguntei que outros preservativos havia, pois os últimos que ali comprara não me serviam. Corou, pigarreou, abriu uma gaveta, fechou, voltou costas e foi para o interior da farmácia. Voltou o empregado e solicito perguntou-me qual era o problema. Expliquei-lhe com detalhe, Procurou outro fabricante e vendeu-me. Não fiquei muito melhor servido, mas, aparentemente, era o que havia. Felizmente mais tarde a oferta variou e há algum tempo, deparei com uma promoção no supermercado de um tipo que me é especialmente confortável. Peguei nalgumas embalagens e, chegado à caixa, a funcionária, jovem desembaraçada e prazenteira, ao ver as embalagens virou-se para mim e perguntou:
— Onde é a festa? Também posso ir?
— Está desde já convidada, respondi-lhe.
E com o relato deste desembaraço de hoje regresso à farmácia. Desta vez à do poema, com a solicitude do farmacêutico e a impaciência do cliente.
A Vaselina
Praça da Ópera: por uma farmácia a dentro
Entra um senhor bem-posto feito um pé-de-vento:
“ Estou com pressa”, diz. “Eu quero vaselina.”
Gentil, o boticário indaga o cliente
Impaciente
A que uso se destina
O graxo ingrediente:
“Se for para o rosto, é melhor levar fina…
Qual?
Que tal
Este artigo
Que o senhor, sem perigo,
Pode usar no rosto?
Eu por mim recomendo sempre a boricada.”
E o cliente, a bufar: “Mas que papagaiada!
Pouco me importa qual, pois é para enrabar!”
Poema original
La vaseline
Chez un pharmacien, place de l’Opéra,
Un monsieur fort bien mis en coup de vent entra:
“Vite, dit-il, donnez-moi de la vaseline!”
Le potard, empressé, demande à ce client
Impatient
A quel us il destine
Le gras ingrédient:
“Est-ce pour le visage? Il en faut de la fine…
En voici
De ci
Pure
Que sur votre figure
Sans danger vous pouvez l’étaler…
J’en ai de boriquée… et je la recommande…”
Le client, trépignant, répond: “Belle demande!
Je m’en fous bougrement, car c’est pour enculer!”
in Poesia Erótica em tradução, Selecção, tradução, introdução e notas de José Paulo Paes, Companhia das Letras, São Paulo, 1993.
Abre o artigo a imagem de um velho anúncio à vaselina. A cada leitor deixo a associação entre a metalinguagem no anúncio, o texto do artigo, e o assunto do poema.