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Comecemos com um esclarecimento aos menos informados do que é um apólogo:
Apólogo — historieta mais ou menos longa, que ilustra uma lição de sabedoria e cuja moralidade é expressa como conclusão. E para instrução e recreio de meninos e crescidos venho hoje com um apólogo de António Dinis da Cruz e Silva (1731-1799) cuja lição o poeta explica assim:


Deste conto consiste a inteligência
Em quanto erra e se engana tristemente
Quem se move a julgar pela aparência.

Deliciosa história de rato e gato onde o galo tem papel essencial, ela mostra-nos simultaneamente os riscos inesperados da vida quando levados pela curiosidade de a viver; o valor de bons conselhos; e como podemos ser ajudados pelos outros sem que nada peçam em troca.

O poema é uma pequena jóia de elegância narrativa e versificatória em rima perfeita emparelhada aabb, quase sempre rica, e às vezes rara, com a moralidade em rima alternada aba.

Apólogo IV

Um rato que a primeira vez saía
Do sombrio buraco, onde vivia,
Ao ver-se sobre a terra, quanto olhava
Espanto tudo, e admiração lhe dava.
Mas o que mais lhe tinha embelezado
Era a pele de um gato bem malhado,
Que meneando a cola, se dispunha
Nele a empolgar a retorcida unha:
Quando um galo emproado passeando
No meio de ambos se meteu cantando.
O ratinho de o ver, todo medroso,
No buraco se esconde pressuroso;
Onde a mãe, que impaciente há muito o espera,
Lhe pergunta o que viu e o detivera.
Mil coisas vi, que de prazer me encheram,
E ali (lhe torna o filho) me prenderam.
Mas entre todas, o que vi mais belo
Foi, mãe, um animal branco e amarelo,
Que os olhos tendo sobre mim pregados,
De longe me fazia mil agrados;
Mas outro que em dois pés só se sustinha,
E uma coroa na cabeça tinha,
Gritando a mim se volve cheio de ira,
E me matara, se lhe não fugira.
Então a mãe lhe diz: Filho inocente,
O animal, que te olhava brandamente,
Devorar-te queria, carniceiro;
E esse, de quem fugindo vens ligeiro,
Da morte te livrou, e foi tua guarda:
Dele não temas, do outro te resguarda.

Deste conto consiste a inteligência
Em quanto erra e se engana tristemente
Quem se move a julgar pela aparência.

 

Escolho publicar este artigo no Dia da Mãe em Portugal para uma homenagem singela às mães que guiam seus filhos nos primeiros passos da vida, alertando para os perigos que ela traz, ainda que raramente eles as levem em atenção, até que seja demasiado tarde. Acresce à homenagem o apreço com que contra ventos e marés, sejam os filhos patinhos feios ou cisnes, a eles se entregam vida fora, no esforço de que apenas o bem lhes aconteça.

 

Nota bibliográfica e iconográfica

Obras de António Diniz da Cruz e Silva vol. II, edição de Maria Luísa Malaquias Urbano, Edições Colibri, Lisboa 2001.

O número IV que acompanha o apólogo é o da edição referida acima.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Georg Schrimpf (1889-1938), Retrato de criança.