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Salpicada de belos versos, qual este que dá título ao artigo, a poesia de Salette Tavares(1922-1994), nas suas multímodas manifestações, é um permanente desafio a medir o peso de cada palavra na expressão precisa do eu e o mundo.
Muitos dos poemas são poemas de despedida: despedida dos sonhos, despedida do amor, despedida da felicidade entrevista. E neles cada palavra tem a carga dos múltiplos sentidos que a linguagem consegue extrair da vida, dando-lhe a cada momento a significação que as nossas limitações permitem.

 

[Foi tão de ave o meu chegar aqui]

Foi tão de ave o meu chegar aqui
que de ti a mim sem que soubesse
no que de ouvido espanto comovi
posei canto silêncio todo prece.

Pousei e levantei secreta chama
envolta no brasio de teu vinho
contra o crime do céu tu me derramas
silenciosa doçura no caminho.

Chamei por ti, tão solitária eu
sem que me dessem outros mais de mim
e dura espada na hora que bateu
em tua mão segura me acolhi.
3.XI.1959

 

[Sobra-me o que te deste]

Sobra-me o que te deste
             no parado desta hora
olhar largo que me veste
             inquiete brisa demora.

Espreitam anjos insónia
              esquina pedra de sonhos
bordam a sombra que mora
              dura mágoa nos meus olhos.

Abro vidros ao luar
              ponho fora do meu peito
desfolho delas no mar
               navegado do meu leito.

Onda oceano em que me alongo
               grito esguio, uivo inferno
hoje perco o longe onde
               me queimarei desespero.

 

[Morre de ar e suspiro]

Morre de ar e suspiro
                     meu outro cansar de penas
que longo caminho longe
                     esquina o dia de brilho.

Escuto, medito e teço
                       arrasto vagar de panos
mão fugitiva no fio
                      rasgando branco de medos.

Entranço negro cabelos
                       enredo olhos de frio
e no cansaço dos dedos
                       escorre-se a noite rio.
23.X.1959

 

[Para dizer o que dizer não posso]

Para dizer o que dizer não posso
abri-me toda ausência
e embarquei
em seus olhos a flor do meu olhar.

De calma e de sorriso outra me dei
entre dedos doçura
e minha brisa
seus lábios avizinham a beijar.

É o luxo saber do que se ignora
bebendo noite escura,
àquela hora
pelo cabelo expande-se o luar.

 

[De triste o sol me levou]

De triste o sol me levou
à beira da praia verde
colhi seco, beijei pedra
perdi caminho, gemi
poente de sol nascente.

De triste me abandonou
vaga de ar pela serra,
troncos de pinho torcido
fecham penumbra na terra,
ai como choram por mim!

De triste o saibro mostrou
seu grão de terra vermelha
gigante areia centelha
do sangue que simulou
molhou-me a sombra de treva.
16.X.1960

 

[Quando os dias são iguais e tristes]

Quando os dias são iguais e tristes
gosto de beber
para galgar a distância
que me separa do ser.
As veias levam o álcool
e o álcool embebeda-se no tanto que percorre.

Sabendo no corpo os caminhos todos
mistura-lhes o fora
dos quartos
das salas
da paisagem casa
da atmosfera inteira.

Fico tonta de universo,
e vibro               e julgo
que os dias já não são iguais nem tristes.
1.I.1970

 

Poemas transcritos de Salette Tavares, Obra Poética 1957-1971, INCM, Lisboa, 1992.

Esta edição inclui um prefácio de Luciana Stegagno Picchio que que de forma breve dá conta do percurso criativo da autora, e mais relevante, uma penetrante análise de Gillo Dorfles à sua poesia, a qual foi o prefácio da edição italiana do livro LEX ICON.

Encontra o leitor curioso outros poemas de Salette Tavares aqui no blog, nas ligações:

Salette Tavares – uma aproximação

Roupa — poema de Salette Tavares

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Oskar Schlemmer (1888-1943), Bauhaus Stairway, 1932.