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O passado aninha-se no fundo das gavetas escreve Joan Margarit (1938) num dos poemas que a seguir transcrevo. São eles contidas reflexões sobre a experiência do viver num arco entre perdas e escolhas erradas, onde, amiúde, versos lapidares dão conta de um sentir que também pode ser o nosso. Afinal o que o poeta escreve no prólogo de apresentação do livro, e cito:
O poema surge do interior do poeta, da sua própria vida, e ainda assim deve falar daqueles subtilíssimos sentimentos que não lhe pertencem a ele apenas, pois nesse caso seria um mau poema, na exacta medida que não poderia interessar a ninguém mais do que a si mesmo. Os poemas devem construir-se a partir de algo que constituindo parte da vida do poeta, pertence igualmente à dos demais.
Não é sem mistério que isto se faz sempre acompanhar de uma exactidão e de uma precisão que radicalmente separam poesia e prosa. Desta exactidão procede o poder de consolação da poesia, pois esta serve para introduzir na nossa solidão alguma mudança que proporcione uma ordem interior mais ampla contra a desordem causada pela vida.
Depois desta limpidez ao descrever uma arte poética para os nossos dias e o papel da poesia na vida de cada um, entrego-vos aos poemas.
Relato sentimental da memória
Amor e tempo é um conflito
que se resolve sempre com dor e esquecimento.
Porque compreender não quer dizer amar,
mas afastar-se mais: já o suspeitava
há muitos anos, quando ainda exercia arquitectura.
Aprendo tudo de novo.
Agora preciso apenas de lealdade
a alguma coisa vaga e solitária,
dura como uma rocha no meio do mar.
Às vezes a mente dos velhos
engrena com fúria a sua lógica.
Vejam-na deambular pelas suas memórias:
percorre uma costa desolada,
porque compreender não quer dizer amar,
mas afastar-se mais. Aprendo tudo de novo.
Chegas tarde ao teu tempo
Chegas tarde ao teu tempo. Palavras duras
que escuto agora como uma derrota.
Mas já não sei de nenhum combate,
nem que tempo era o meu. É uma pena
não se ser ninguém, ter errado
o comboio, ter ficado sem malas,
adormecido no banco, passar ao largo,
e achar-se agora sem roupa limpa,
cansado, num hotel reles de uma só
e má estrela, que deve ser a minha.
Prescindirei de tudo menos do poeta
que fica do desastre. Fingirei ver
que no final de contas errei o século:
isto será Paris e eu Verlaine.
Aventura doméstica
Sozinho em casa procuro nos armários.
Encontro antigos mapas de estradas,
contratos que venceram, esferográficas
que não escreverão mais cartas, velhas calculadoras
sem pilhas, relógios que o tempo derrotou.
O passado aninha-se no fundo das gavetas
como um rato triste. Vazios, os vestidos pendem
como velhas personagens que nos interpretaram.
Mas de súbito encontro a tua lingerie,
da cor da noite, da areia; fina, com pequenos bordados.
Cuecas, soutiens e meias que desdobro
e que me fazem regressar ao brilhante, embora misterioso,
fundo de amor e sexo: é ele que, de facto,
dá vida às casas, como os faróis e as luzes
de barcos e cafés a um porto ignorado.
Não deites fora as cartas de amor
Elas não te abandonarão.
Passará o tempo, apagar-se-á o desejo
— essa flecha de sombra —
e os rostos sensuais, inteligentes, belíssimos
ocultar-se-ão em ti, no fundo de um espelho.
Cairão os anos. Cansar-te-ão os livros.
Decairás ainda mais
e perderás até a poesia.
O ruído frio da cidade nos vidros
acabará por ser a tua única música,
e as cartas de amor que tiveres guardado
serão a tua última literatura.
Poemas transcritos de Joan Margarit, Misteriosamente FELIZ, selecção, tradução (notável!) e posfácio de Miguel Filipe Mochila, edição Língua Morta, 2015.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Charles Demuth (1883-1935).
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