Quando numa leitura profissional me inteirava dos desafios de engenharia vencidos na execução do novo complexo de redes e estações de metro London’s Crossrail, ainda em construção em Londres, e da dimensão multidisciplinar da obra, simultaneamente comparava estes trabalhos com a tragédia recente na Índia em consequência do desmoronamento de um viaduto também em construção num ambiente urbano.
As assimetrias no mundo são, pelo que se pode intuir, fortemente agravadas por factores exteriores à biologia, onde os valores morais por detrás da aplicação do conhecimento fazem a diferença.
Educação e crença caminham de mãos dadas na vida de cada um, mas, como escreveu Goethe (1749-1832) no poema que hoje transcrevo: … somente o homem / Pode o impossível: / Só ele distingue, / Escolhe e julga; / E pode ao instante / Dar duração.
Neste poema, o poeta dá conta do lugar relativo de homens e divindade:
…
E nós veneramos
Os Imortais
Como se homens fossem,
Em grande fizessem
O que em pequeno o melhor de nós
Faz ou deseja.
…
Acentua o poema noutro passo, a indiferença da natureza comandada pelas forças divinas, a que alguns chamam acaso:
…
Pois insensível
É a natureza:
O sol ‘spalha luz
Sobre maus e bons,
E ao criminoso
Brilham como ao santo
A luz e as ‘strelas.
…
Termina o poema, tal como abre, exortando o homem ao seu melhor, para assim ser exemplo de divindade:
…
Que o homem nobre
Seja caridoso e bom!
Incansável crie
O útil, o justo,
E nos seja exemplo
Dos seres pressentidos.
Este poema, O Divino, juntamente com o poema Prometeu, do qual transcrevo a última estrofe:
…
Pois aqui estou! Formo Homens
À minha imagem,
Uma estirpe que a mim se assemelhe:
Para sofrer, para chorar,
Para gozar e se alegrar,
E pra não te (*) respeitar,
Como eu!
(*) Zeus
e ainda com o poema Limites da Humanidade, formam uma espécie de trilogia sobre a relação do homem com a divindade na obra poética de Goethe.
Antes de vos entregar à leitura integral do poema O Divino, transcrevo uma estrofe de Limites da Humanidade:
Pois com Deuses
Não deve medir-se
Homem nenhum!
Ergue-se ele ao alto
Até tocar
Co’a cabeça os astros,
Nenhures se prendem
Os pés incertos,
E com ele brincam
Nuvens e ventos.
Sabendo, pois, como o poeta vê o Divino, segue o poema integral.
O Divino
Nobre seja o homem,
Caridoso e bom!
Pois isso apenas
É que o distingue
De todos os seres
Que conheçemos.
Glória aos incógnitos
Mais altos seres
Que pressentimos!
Que o homem se lhe iguale!
Seu exemplo nos ensine
A crer neles!
Pois insensível
É a natureza:
O sol ‘spalha luz
Sobre maus e bons,
E ao criminoso
Brilham como ao santo
A luz e as ‘strelas.
Vento e torrentes,
Trovão e saraiva
Rugem seu caminho
E agarram,
Velozes passando,
Um após outro.
Tal a sorte às cegas
Lança mãos à turba
E agarra os cabelos
Do menino inocente
Ou a fronte calva
Do velho culpado.
Por eternas leis,
Grandes e de bronze,
Temos todos nós
De fechar os círculos
Da nossa existência.
Mas somente o homem
Pode o impossível:
Só ele distingue,
Escolhe e julga;
E pode ao instante
Dar duração.
Só ele é que pode
Premiar o bom,
Castigar o mau,
Curar e salvar,
Unir com proveito
Tudo o que erra e divaga.
E nós veneramos
Os Imortais
Como se homens fossem,
Em grande fizessem
O que em pequeno o melhor de nós
Faz ou deseja.
Que o homem nobre
Seja caridoso e bom!
Incansável crie
O útil, o justo,
E nos seja exemplo
Dos seres pressentidos.
Todas as traduções transcritas são de Paulo Quintela.
in J. W. Goethe (1749-1832), Poemas, 2ª edição corrigida e ampliada, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1958.
Abre o artigo a imagem de um desenho de François Boucher (1703-1770).