Dando conta dos desastres da guerra, o poema de hoje abarca tudo: a destruição material, a impassível constância da natureza perante os desastres dos homens, a desolação na separação dos afectos, a carestia da vida decorrente da destruição, e, finalmente, a vulnerabilidade dos mais velhos a quem a vida faz viver, mais que aos outros, estas tragédias uma e outra vez repetidas.
Há anos publicado no blog, a tragédia dos refugiados do Médio Oriente, leva-me a lembrá-lo de novo.
Do poema escolhido, OLHANDO A PRIMAVERA, do poeta chinês TU FU (712-770), começo com duas versões, uma em português e outra em castelhano. Ambas se equivalem na verdade poética, ainda que a versão em português da autoria de Gil de Carvalho possua dois versos dos mais sublimes que encontrei:
Tempos assim/ tiram lágrimas das flores
Não conheço forma poética mais bela de transmitir a desolação, que a encontrada pelo poeta/tradutor. A impossibilidade material do descrito, fazer chorar as flores, cria no leitor a dimensão quase cósmica da tragédia, tanto mais quanto as flores podem ser associadas ao mais belo que a natureza pode oferecer, e são, na sua essência, a ausência da violência sobre o mundo. Falo do mundo na medida em que a referência tempos assim remete imediatamente para a história e o fluir dos acontecimentos humanos. Quando o tempo passa estamos no mundo terreno. Fora dele apenas existe a eternidade onde a ausência do fluir do tempo se define.
OLHANDO A PRIMAVERA
O país em ruínas
Rios e colinas permanecem
Cidades na Primavera
Árvores e folhas renascem.
Tempos assim
Tiram lágrimas das flores.
Separado do seu par
Treme o coração da ave.
Os fogos da guerra
Já juntaram três luas.
As novas de casa
Valem agora uma fortuna.
Uma velha cabeça grisalha,
A cada infortúnio dilacerada.
E o cabelo que rareia
Já nem o alfinete o segura.
VISIÓN DE PRIMAVERA
En el país derrotado, rios e colinas impassibles.
Ciudad primaveral. Árboles frondosos y hierba abundante.
Complacidas, las flores lloram conmigo;
apenadas, las aves lamentan mi despedida.
Llamas de guerra rugen ya tres meses;
mil piezas de oro cuesta una carta familiar.
Me toco la cabeza de blancos cabellos,
tan escasos que no pueden sostener el broche.
Tradução de Guillermo Danino
Há uma linguagem essencial nesta poesia, capaz de nos transmitir o sentido profundo do tempo e do mundo apenas com a meia dúzia de termos que o poema contém.
Esta é uma característica da poesia chinesa clássica que, depois de nos familiarizarmos com ela, parece a linguagem mesma da poesia.
A verbosidade poética acaba por soar estranha ao fim de algum tempo de convívio com estas criações.
Faça-se agora uma leitura comparada das traduções do poema: português // castelhano por forma a penetrar melhor na multiplicidade de sentidos possivel neste poema
OLHANDO A PRIMAVERA // VISIÓN DE PRIMAVERA
O país em ruinas / Rios e colinas permanecem // En el país derrotado, rios e colinas impassibles.
Cidades na Primavera / Árvores e folhas renascem. // Ciudad primaveral. Árboles frondosos y hierba abundante.
Tempos assim / Tiram lágrimas das flores. // Complacidas, las flores lloram conmigo;
Separado do seu par / Treme o coração da ave. // apenadas, las aves lamentan mi despedida.
Os fogos da guerra / Já juntaram três luas. // Llamas de guerra rugen ya tres meses;
As novas de casa / Valem agora uma fortuna. // mil piezas de oro cuesta una carta familiar.
Uma velha cabeça grisalha, / A cada infortúnio dilacerada. // Me toco la cabeza de blancos cabellos,
E o cabelo que rareia / Já nem o alfinete o segura. // tan escasos que no pueden sostener el broche.
Acrescento agora três versões em inglês, das quais duas de David Hinton, eminente poeta e premiado tradutor de poesia chinesa. No entanto, os dois versos que me encantam não tem na sua tradução a força nem a profundidade poética contidas na tradução portuguesa:
Blossoms scatter tears thinking of us
nem a possui a tradução de Arthur Cooper que transcrevo mais à frente e nos dá para estes versos:
Though at such times / flowers might drop tears,
embora muito provavelmente Gil de Carvalho a tenha considerado na sua versão.
Tradução de David Hinton, 1990:
SPRING LANDSCAPE
Rivers and mountains survive broken countries.
Spring returns. The city grows lush again.
Blossoms scatter tears thinking of us, and this
Separation in a bird’s cry startles the heart.
Beacon-fires have burned through three months.
By now, letters are worth ten thousand in gold.
My hair is white and thinning so from all this
Worry-how will I ever keep my hairpin in?
Tradução de David Hinton, 2008:
SPRING LANDSCAPE
The country in ruins, rivers and mountains
continue. The city’s grown lush with spring.
Blossoms scatter tears for us, and all these
separations in a bird’s cry startle the heart.
Beacon-fires three months ablaze: by now
a simple letter’s worth ten thousand in gold,
and worry’s thinned my hair into such white
confusion I can’t even keep this hairpin in.
Tradução de ARTHUR COOPER, 1973:
LOOKING AT THE SPRINGTIME
In fallen States
hills and streams are found,
Cities have Spring,
grass and leaves abound;
Though at such times
flowers might drop tears,
Parting from mates,
birds have hidden fears:
The beacon fires
have now linked three moons,
Making home news
worth ten thousand coins;
An old grey head
scratched at each mishap
Has dwindling hair,
does not fit its cap!
É vasta, como de vê, a possibilidade de leituras do poema ao transferi-lo para línguas ocidentais, conservando a sua significação original, e esta é uma das dificuldades maiores que a poesia chinesa clássica enfrenta no ocidente, decorrente da ausência de gramática nos poemas, pois dependendo do génio do tradutor, poderemos estar perante uma banalidade, ou perante um fraseado ininteligível, ou menos frequentemente perante uma obra-prima numa língua ocidental.
O poema terá sido escrito por Tu Fu na primavera de 757, durante a sua segunda estadia na capital, Ch’ang-an, desta vez ocupada pelas tropas do general rebelde An Lu-shan.
Não julgo essencial o conhecimento dos detalhes da história chinesa desta época para apreender a universalidade subjacente ao poema. Quem tenha vivido tempos dramáticos longe dos seus saberá sentir a verdade emocional por detrás de tão comovente síntese poética.
Tu Fu ou Du Fu é, na opinião daqueles qualificados para o dizer, o maior poeta lírico que sobreviveu em qualquer língua. Serão seus possíveis competidores, na opinião dos mesmos, Catulo e Beaudelaire, e também, de algum modo, Sapho, não fora da poetisa apenas nos terem chegado fragmentos.
Noticia bibliográfica:
Uma Antologia de Poesia Chinesa por Gil de Carvalho, edição Assirio & Alvim, 2010
Tu Fu, Bosque de pinceles, Selección tradución y notas de Guillermo Danino, Ediciones Hiperión, 2006
Classical Chinese Poetry, An Anthology, tradução e edição de David Hinton, 2008
The Selected Poems of Tu Fu, tradução e selecção de David Hinton, 1990