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14 de Fevereiro, Dia de Namorados, que a nossa sociedade mediatizada e sufocada pela publicidade transformou em obrigação de comemorar — mesmo quando entre apaixonados Dia de Namorados são todos os dias — e simultaneamente criou uma desmesurada angústia, sobretudo feminina e adolescente, quando o namorado não existe para celebrar o auspicioso dia. Adiante.
O nosso tempo é o que é, e com o nosso comportamento lá o vamos alimentando, hoje com pequeninos corações vermelhos, amanhã com enfeites de outra cor, seguramente.
Deixemo-nos de preâmbulos e passemos à poesia com dois retratos femininos por William Carlos Williams (1883-1963): um Retrato proletário e um Retrato de uma senhora. É a condição social a diferenciar tudo nestes poemas. Para o Retrato proletário apenas os sinais exteriores do vestir desenham o ser humano, num pudor de linguagem que liberta a imaginação para desenhar a mulher por detrás da jovem que procura o prego no sapato:
Retrato proletário
Uma jovem alta sem chapéu
de avental
Parada na rua com o cabelo
puxado para trás
Um pé com a peúga tocando
a calçada
O sapato na mão. Examinando-o
atentamente
Retira a palmilha
à procura do prego
Que a magoava tanto
Tradução do poeta José Agostinho Baptista,
in Antologia Breve, Assírio & Alvim, Lisboa, 1995.
Para o Retrato de uma senhora, é o tapa-destapa que incita o desejo do corpo, o pretexto para o retrato.
Tendo como mote as figuras femininas do século XVIII francês, pintadas por Watteau e Fragonard, e de algum modo arquétipos, até há pouco tempo, da feminilidade na ociosidade do seu viver, cuja preocupação única seria o cuidado do corpo numa vida sem-que-fazer; eram figuras de mulher onde uma quase evanescência se cristalizava e as peculiaridades de comportamento se aceitavam. Foram modelos de excelência para ajudar à divagação dos homens, e à afirmação de um preciso conceito de masculinidade social. E é exactamente nas sociedades do Novo Mundo que este modelo regressa como paradigma de um viver mítico onde a fantasia em torno ao Dia dos Namorados se enquadra.
Retrato de uma senhora
Suas coxas são macieiras
cujas flores tocam o céu.
Que céu? O céu
onde Watteau dependurou
uma sandália de mulher.
E seus joelhos
são uma brisa do sul
— ou uma rajada de neve.
Mas ah! que espécie
de homem era Fragonard?
— como se isso respondesse
a alguma coisa. Ah, sim, abaixo
dos joelhos — pois a canção
cai desse jeito, é um
desses dias brancos de verão,
a erva alta dos tornozelos
adeja por sobre a praia —
Que praia?
Ah, talvez pétalas. Como
saberia eu?
Que praia? Que praia?
Eu disse pétalas de macieira.
Tradução do poeta Odylo Costa, filho,
in Cantiga Incompleta, Livraria José Olympio Editora, Rio, 1971.
Para o poema Retrato de uma senhora, ocupam-se os estudiosos a dilucidar qual o papel da referência a Watteau, uma vez que a pintura tomada como pretexto é O baloiço de Fragonard. Questão que me parece de somenos, mas para leitores curiosos, e para a pintura de Fragonard, remeto para o artigo do blog com o poema de Jorge de Sena sobre o assunto onde se encontram também as reproduções dos dois quadros de Fragonard com baloiço.
Nota sobre as imagens
As imagens reproduzem pinturas de Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938).