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Tanto tempo passado, regresso no blog à poesia de Vitorino Nemésio (1901-1978).
Com uma linguagem poética frequentemente desconcertante, que não desdenha as formas rígidas da quadra ou do soneto, a poesia de Vitorino Nemésio é sobretudo confessional. O poeta fala-nos de si trazendo à conversa a interrogação de um homem religioso consciente do seu livre arbítrio e sabedor da vontade soberana de Deus, e a quem o corpo por vezes impacienta.
A meia-noite deu-me as doze gotas, / O meu mal vai dormir:
…
É murcha a roupa que componho, / Com minha forma, atrás da porta:
Neste seu falar de si, mais que contemplação, lemos uma reflexão sobre o nada que somos e o que fazer com a vida que passa — a Vida é apenas tempo:
Com alma, ideias, tempo, luta / Componho um homem, sou sujeito:
Esgotado o tempo, não há retorno. Daí a decisiva importância das escolhas no exercício de um arbítrio que é nosso, caldeado pela aceitação da decisão divina:
Se é possível, desvia o fel do vaso: / Se não é, beberei. Não faças caso.
Ler esta poesia é aprender isto também:
Ninguém nos ensina a morte, / E a vida é de mais; / A vida sabemos muito bem!
Deixo-vos uma curta escolha de poemas, sem comentários inúteis. Noutros locais existirá certamente a exegese da obra. Aqui, tão só o gosto de saborear o verso na profunda originalidade da sua construção.
Retrato
Cruel como os Assírios,
Lânguido como os Persas,
Entre estrelas e círios
Cristão só nas conversas.
Árabe no sossego,
Africano no ardor;
No corpo, Grego, Grego!
Homem, seja onde for.
Romano na ambição,
Oriental no ardil,
Latino na paixão,
Europeu por subtil;
Homem sou, homem só
(Pascal: “nem anjo nem bruto”):
Cristãmente, do pó
Me levante impoluto.
Ser Levado
Tivesse eu sido o que não fui,
Hoje era o mesmo projectado
António, Pedro, Lopo, Rui,
Quatro semblantes num só estado.
Mas eu serei, ainda que a morte
Me faça amiba, verme, pó:
Agulha a Deus, íntimo norte,
Resto de tudo uma alma só.
De eterno levo o tempo em frente
Como o boi leva o feno visto:
Mas ele é rés, e em mim vai gente:
Levado embora, existo, existo!
31.7.59
A Vida é Tempo
Com alma, ideias, tempo, luta
Componho um homem, sou sujeito:
Penso-me livre numa gruta
Como pretérito imperfeito.
De era se faz o meu futuro,
Será será o meu passado
Como da hera se faz muro
Mais que de pedra levantado.
Se horas a nada levam tudo,
Nada nasceu, tudo é que é,
Haja ou não haja Sartre e o mudo
Deus Tudo-Nada havido em fé.
Que ele é Deus mesmo no absoluto
Ser contestado, tão essente
Que se faz Deus na voz que escuto,
Mesmo que o negue, e me desmente.
31.7.59
Natureza-Morta
A meia-noite deu-me as doze gotas,
O meu mal vai dormir:
Olham-me, vãs, as minha botas,
Que eu a tão longe faço ir.
É murcha a roupa que componho,
Com minha forma, atrás da porta:
Espelho a que me envergonho!
Minha natureza morta!
Poema 40 do livro eu, comovido a Oeste [1940]
De quando em quando junto as recordações para morrer.
Não gosto de andar sem nada.
Qualquer dia vem aí a vida e vai-se:
A vida, que não é isto quente e rápido que eu tenho,
Mas uma mão com jeito: ela nos leva,
E esse levar é que é morrer.
Sei que é assim, e, se o não sei, oxalá!
Já levei a minha alma à beira de uma coisa ampla e sem nexo,
Uma espécie de rio, uma impressão de fosco e de profundo,
Onde ninguém sabia nada de veemente e claro
— Questões de esquerda, centro, o norte, o sexo —
E por lá me esqueci.
Mas foram só uns dias. Perdi tudo.
Talvez deixasse a pele nos canaviais concretos
Sobre a margem de cá.
E assim, não;
Assim, sem pele, nada dá presa ao homem;
Só sei que Deus era mudo
E os céus discretos.
Tenho pena.
Custa-me este rigor de Deus com os mortos em sonhos
— Voluntários do Ser, os únicos fiados.
Ninguém nos ensina a morte,
E a vida é de mais;
A vida sabemos muito bem!
Ah, se me levassem a ver o rio de Sempre ainda!
— Não levar para vir, nem ir deliberado,
Mas como a palha vai na ave vagabunda:
Esquecida nas penas,
Não no seu bico agudo e cuidadoso,
Que isso já era intenção.
A luz sem cru de cores me tocaria,
E esse toque talvez já fosse consciência,
Saber de morte e de vida,
Lá onde se unem ambas,
Como as pontas do boi rimam na paz da tarde.
Áspera Vida, poema VI
Passeio à tarde a solidão contida.
O meu vulto embrulhado e passageiro,
Debaixo de árvores, diz adeus à vida.
Não quero mais o travo de reseda
Nem o largo planar do pensamento.
Passeio a passo de seda
A avenida do vento.
Ó páginas do céu por ler ainda,
Que inocência no azul perdi sonhando?
Já o sol se fecha sobre a vida finda.
Regressai, flores abertas, às raízes!
Não posso mais com tudo o que me dizes…
Terra, que gosto a fel teus seios têm!
Prece
Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha não.
Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu Filho copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.
Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se adormenta.
O teu perdão de Pai ainda não pode ser,
Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.
Poemas transcritos dos livros:
eu, comovido a Oeste [1940]
Nem toda a noite a vida [1952]
O Pão e a Culpa [1955]
O Verbo e a Morte [1959]
As pinturas ao longo do artigo são de Vincent van Gogh (1853-1890).
Olá, acabo de descobrir o blog e adorei. A-do-rei. Ontem assisti ao recém lançado filme, Com Amor, Van Gogh e foi ótimo me deparar com as telas dele aqui. Meu abraço.
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Obrigado pelo comentário.
Até breve.
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