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Novelas francesas e uma rosa 1887Tanto tempo passado, regresso no blog à poesia de Vitorino Nemésio (1901-1978).

Com uma linguagem poética frequentemente desconcertante, que não desdenha as formas rígidas da quadra ou do soneto, a poesia de Vitorino Nemésio é sobretudo confessional. O poeta fala-nos de si trazendo à conversa a interrogação de um homem religioso consciente do seu livre arbítrio e sabedor da vontade soberana de Deus, e a quem o corpo por vezes impacienta.

A meia-noite deu-me as doze gotas, / O meu mal vai dormir:

É murcha a roupa que componho, / Com minha forma, atrás da porta:

Quarto de Van Gogh em Arles 1888

Neste seu falar de si, mais que contemplação, lemos uma reflexão sobre o nada que somos e o que fazer com a vida que passa — a Vida é apenas tempo:

Com alma, ideias, tempo, luta / Componho um homem, sou sujeito:

Esgotado o tempo, não há retorno. Daí a decisiva importância das escolhas no exercício de um arbítrio que é nosso, caldeado pela aceitação da decisão divina:

Se é possível, desvia o fel do vaso: / Se não é, beberei. Não faças caso.

Ler esta poesia é aprender isto também:

Ninguém nos ensina a morte, / E a vida é de mais; / A vida sabemos muito bem!

Deixo-vos uma curta escolha de poemas, sem comentários inúteis. Noutros locais existirá certamente a exegese da obra. Aqui, tão só o gosto de saborear o verso na profunda originalidade da sua construção.

 

Retrato

 

Cruel como os Assírios,

Lânguido como os Persas,

Entre estrelas e círios

Cristão só nas conversas.

 

Árabe no sossego,

Africano no ardor;

No corpo, Grego, Grego!

Homem, seja onde for.

 

Romano na ambição,

Oriental no ardil,

Latino na paixão,

Europeu por subtil;

 

Homem sou, homem só

(Pascal: “nem anjo nem bruto”):

Cristãmente, do pó

Me levante impoluto.

Rispal Restaurant at Asnières 1887

Ser Levado

 

Tivesse eu sido o que não fui,

Hoje era o mesmo projectado

António, Pedro, Lopo, Rui,

Quatro semblantes num só estado.

 

Mas eu serei, ainda que a morte

Me faça amiba, verme, pó:

Agulha a Deus, íntimo norte,

Resto de tudo uma alma só.

 

De eterno levo o tempo em frente

Como o boi leva o feno visto:

Mas ele é rés, e em mim vai gente:

Levado embora, existo, existo!

31.7.59

 The Night Café in the Place Lamartine in Arles

A Vida é Tempo

 

Com alma, ideias, tempo, luta

Componho um homem, sou sujeito:

Penso-me livre numa gruta

Como pretérito imperfeito.

 

De era se faz o meu futuro,

Será será o meu passado

Como da hera se faz muro

Mais que de pedra levantado.

 

Se horas a nada levam tudo,

Nada nasceu, tudo é que é,

Haja ou não haja Sartre e o mudo

Deus Tudo-Nada havido em fé.

 

Que ele é Deus mesmo no absoluto

Ser contestado, tão essente

Que se faz Deus na voz que escuto,

Mesmo que o negue, e me desmente.

31.7.59

Par de sapatos 1888

 

Natureza-Morta

 

A meia-noite deu-me as doze gotas,

O meu mal vai dormir:

Olham-me, vãs, as minha botas,

Que eu a tão longe faço ir.

 

É murcha a roupa que componho,

Com minha forma, atrás da porta:

Espelho a que me envergonho!

Minha natureza morta!

 

Montmartre 1886

Poema 40 do livro eu, comovido a Oeste [1940]

 

De quando em quando junto as recordações para morrer.

Não gosto de andar sem nada.

Qualquer dia vem aí a vida e vai-se:

A vida, que não é isto quente e rápido que eu tenho,

Mas uma mão com jeito: ela nos leva,

E esse levar é que é morrer.

Sei que é assim, e, se o não sei, oxalá!

Já levei a minha alma à beira de uma coisa ampla e sem nexo,

Uma espécie de rio, uma impressão de fosco e de profundo,

Onde ninguém sabia nada de veemente e claro

— Questões de esquerda, centro, o norte, o sexo —

E por lá me esqueci.

 

Mas foram só uns dias. Perdi tudo.

Talvez deixasse a pele nos canaviais concretos

Sobre a margem de cá.

E assim, não;

Assim, sem pele, nada dá presa ao homem;

Só sei que Deus era mudo

E os céus discretos.

 

Tenho pena.

Custa-me este rigor de Deus com os mortos em sonhos

— Voluntários do Ser, os únicos fiados.

Ninguém nos ensina a morte,

E a vida é de mais;

A vida sabemos muito bem!

 

Ah, se me levassem a ver o rio de Sempre ainda!

— Não levar para vir, nem ir deliberado,

Mas como a palha vai na ave vagabunda:

Esquecida nas penas,

Não no seu bico agudo e cuidadoso,

Que isso já era intenção.

A luz sem cru de cores me tocaria,

E esse toque talvez já fosse consciência,

Saber de morte e de vida,

Lá onde se unem ambas,

Como as pontas do boi rimam na paz da tarde.

 

Les Alyscamps, Falling Autumn Leaves 1888

Áspera Vida, poema VI

 

Passeio à tarde a solidão contida.

O meu vulto embrulhado e passageiro,

Debaixo de árvores, diz adeus à vida.

Não quero mais o travo de reseda

Nem o largo planar do pensamento.

Passeio a passo de seda

A avenida do vento.

Ó páginas do céu por ler ainda,

Que inocência no azul perdi sonhando?

Já o sol se fecha sobre a vida finda.

Regressai, flores abertas, às raízes!

Não posso mais com tudo o que me dizes…

Terra, que gosto a fel teus seios têm!

par de botas 1886

 

Prece

 

Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,

Como quem deixa à porta o saco para o pão.

Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.

O que for, assim seja à tua mão.

Tua vontade se faça, a minha não.

 

Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,

Do flanco de teu Filho copiado.

Corre água, tempo e pus no sangue quente:

Outro bem não me é dado.

Tudo e sempre assim seja,

E não o que a alma tíbia só deseja.

 

Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,

Que com pontas de fogo o podre se adormenta.

O teu perdão de Pai ainda não pode ser,

Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:

Se é possível, desvia o fel do vaso:

Se não é, beberei. Não faças caso.

 

Poemas transcritos dos livros:

 

eu, comovido a Oeste [1940]

Nem toda a noite a vida [1952]

O Pão e a Culpa [1955]

O Verbo e a Morte [1959]

 Natureza-morta 1887

As pinturas ao longo do artigo são de Vincent van Gogh (1853-1890).