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A pretexto do poema Glosa de Sophia de Mello Breyner Andressen que vem no artigo seguinte, republico este artigo onde no final se encontra o poema de Fernando Pessoa glosado por Sophia nesse seu poema.
HOJE QUE A TARDE É CALMA e o céu tranquilo,
E a noite chega sem que eu saiba bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, e o que sou o que é que tem.
Leio o poeta em mim:
Como alguém distraído na viagem, / Segui por dois caminhos par a par. / Fui com o mundo parte da paisagem; / Comigo fui sem ver nem recordar.
Retomo o poema:
Olho por todo o meu passado e vejo / Que fui quem foi aquilo em torno meu, / Salvo o que o vago e incógnito desejo / De ser eu mesmo de meu ser me deu.
Chegados aqui, onde hoje estou, conheço / Que sou diverso no que informe estou. / No meu próprio caminho me atravesso. / Não conheço quem fui no que hoje sou.
De novo constato: não gosto da poesia de Fernando Pessoa. Não gosto no sentido em que me deleito com a lírica de Camões. No entanto, a poesia de Pessoa tem-me revelado mais sobre mim que provavelmente qualquer outra escrita.
AQUI, NESTE SOSSEGO e apartamento, / Nesta quieta solidão sem fim, / Sem cuidado ou tormento / Que ocupe este momento, / Da vida e mundo volto-me p’ra mim.
Tão breve sombra do que pude ser / Me encontro, tão perdida semelhança / Com minha vida por acontecer, …
Interrompo o poema aqui. Esta leitura incomoda-me. Mas volto sempre lá, privilégio tão só da arte, continuar irresistível. Mas não transforma a leitura num prazer. Daí definitivamente afirmar “não gosto da poesia de Fernando Pessoa” sabendo que sem ela, eu, provavelmente, seria outra pessoa.
Nos meus vinte anos, ortónimo e heterónimos foram, durante quase um ano, minha leitura de cabeceira. Pegava-lhes, lia um pouco e largava incomodado. No dia seguinte não resistia e voltava a eles. Hoje:
CONVERSO ÀS VEZES comigo / E esse diálogo a sós / Com o impossivel amigo / Que sonha cada um de nós,
Vai de clareira em abrigo / Ouvido, visto, veloz / Das expressões que consigo / Das sombras a que dá voz.
E a perfeita consonância / De quem fala com quem ouve / Aquece a lume de infância /
A casa em que ainda chove, / E eu durmo a alada distância / Da conversa que não houve.
Mas engana-se quem suponha que tanto o poeta como eu apenas olhamos para o umbigo. De mim calo por pudor, mas ao poeta, faminto do relevo tapado, Ó fome, quando é que eu como?, veja-se como o deixou aquela loura nos idos de Setembro de 1930:
DÁ A SURPRESA DE SER
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.
Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.
E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a Saliência do flanco
Do seu relevo tapado.
Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?
Não sei se o poeta comeu, mas aquele pobre moço, de quem a seguir conto a história, não comeu, apenas sonhou, e vejam o que aconteceu:
Fodê-la era o seu sonho recorrente.
Extasiado,
pensava na maravilha
de poder ainda um dia
gozar tamanha ventura.
E assim, mal acordava
voltava a dormir sorrindo
envolto na fantasia
de sonhar a alegria
que em vida nunca teria.
Em vão a fome e a sede
o chamaram à razão.
Morreu abraçado ao sonho
num sossego de ilusão.
Despeço-me com a convicção que sonhos destes valem a morte que trazem.
Noticia bibliográfica:
Os poemas transcritos foram publicados pela 1ªvez nas edições seguintes:
AQUI, NESTE SOSSEGO e apartamento (15-5-1923) – Poemas de Fernando Pessoa, tomo III 1921-1930, edição crítica, vol I, IN-CM, 2001 (transcrição parcial)
CONVERSO ÀS VEZES COMIGO(25.11-1924) – Poemas de Fernando Pessoa, tomo III 1921-1930, edição crítica, vol I, IN-CM, 2001
DÁ A SURPRESA DE SER (10-9-1930) – Poesias, 1942
HOJE QUE A TARDE É CALMA(1-8-1931) – Revista de Portugal nº4, 1938 (transcrição parcial)
As transcrições foram efectuadas da edição em 3 volumes da Poesia de Fernando Pessoa publicada pela Assírio & Alvim e preparada por Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine.
O resto do texto, o crime, é de minha responsabilidade.
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