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Depois de tão longa ausência, regresso com As Mulheres, fonte de tanta da nossa alegria, contadas pela poesia de Gabriele D’Annunzio (1863-1938).

Serenas, alumiadas, tão frágeis, outras reacendendo-se de amor até à medula, de todas nos fala o poema, E maravilhosamente / eu as conheci.
(ao lembrá-lo ainda as veias me tremem de ternura) diz-se no poema com que esta evocação inominada termina.

As Mulheres

Houve mulheres serenas,
de olhos claros, infinitas
no seu silêncio,
como largas planícies
onde um rio ondeia;
houve mulheres alumiadas
de ouro, émulas do Estio
e do incêndio,
semelhantes a searas
luxuriantes
que a foice não tocou
nem o fogo devora,
sequer o dos astros sob um céu
inclemente;
houve mulheres tão frágeis
que uma só palavra
as tornava escravas,
como no bojo de uma taça
emborcada
se aprisiona uma abelha;
outras houve, de mãos incolores,
que todo o excesso extinguiam
sem rumor;
outras, de mãos subtis
e ágeis, cujo lento
passatempo
era o de insinuar-se entre as veias,
dividindo-as em fios de meada
e tingindo-as de azul marinho;
outras, pálidas, cansadas,
devastadas pelos beijos,
mas reacendendo-se de amor
até à medula,
com o rosto em chamas
entre os cabelos oculto,
as narinas como
asas inquietas,
os lábios como
palavras de festa,
as pálpebras como
violetas.
E houve outras ainda.
E maravilhosamente
eu as conheci.

Depois desta evocação passemos à memória de um especial encontro relatado nesta primeira elegia romana:

[Da Primeira Elegia Romana]

Quando (ao lembrá-lo ainda as veias me tremem de ternura)
meio ébrio saí de sua casa amada,

através de ruas efervescentes dos últimos labores do dia,
de rumores, carruagens, roucos gritos,

súbito senti, do fundo peito, toda a alma elevar-se,
cupidamente, e no alto vi, sobre os estreitos muros,

romper a ígnea zona por onde o crepúsculo do Outono,
céu húmido e vastas nuvens, incendiava Roma.

Nem da hora nem dos lugares me sentia consciente. Seria
um sonho falaz a possuir-me? Ou todas minhas cônscias

alegrias eram coisas a produzir em torno um insólito lume?
Não o sabia. Mas todas as coisas produziam lume.

Imóveis, ardiam as nuvens, e, qual sangue de monstros
assassinados, de seus flancos rompam rubros rios.

Abre o artigo com uma reprodução de O nascimento de Vénus de Sandro Botticelli (1445-1510), êxtase primeiro de uma remota visita em 1978 à Galeria Uffizi em Florença.

A pretexto, ou provocado por ela, escreveu Jorge de Sena os Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena publicados a fechar o livro Metamorfoses (Lisboa, 1963) e que convido o leitor a procurar.

Termino o artigo com 2 detalhes desta deslumbrante pintura:

Primeiro a personificação de Vénus (ou Afrodite para os Gregos), a deusa do amor,

depois o par  Zéfiro e Aura soprando a suave brisa que empurra para terra a deusa e a faz reinar entre os homens.

Noticia bibliográfica

Os poemas de Gabriele D’Annunzio (1863-1938) são traduções de David Mourão-Ferreira, publicados no volume III de Vozes da Poesia Europeia, Colóquio Letras nº165.

Sobre a vida e a obra de Sandro Botticelli, continua sem rival o estudo de Ronald Lightbown, publicado pela primeira vez em 1978 e sucessivamente reeditado, possuindo algumas das edições luxuoso complemento fotográfico.

Este Nascimento de Vénus possui 172,5 x 278,5 cm e terá sido pintado entre 1484-86.