Abri a gaveta, e, em maré de despudor, encho o blog com parte do que lá encontrei. Por entre rasgos de desenfado ou indignação surgem poemas guardados ao voar da cafeteira. Deixo-vos estes.
I
O conforto vagabundo pousou nas asas do céu
e aí permaneceu.
É objecto de ensaios e breves meditações
na busca da evidência.
Quem passa aspira-lhe o cheiro
e a quem olha de longe
devolve intacto o perfume da sublime aspiração.
II
A D. Eulália hoje trouxe sarilhos em profusão.
Deixou à porta o pincel,
escovou a pregadeira,
e saiu pela janela em voo baixo e picado sobre a cadeira da fé.
Caiu a pobre coitada e acordou
estremunhada
com as pinças e o vestido enfiados no cabide da panela de sair.
Veio a vizinha a correr
espantada do silêncio que tanto barulho fazia.
Entra pela chaminé o besouro prazenteiro
e pica a mão do bigode sentado à espera da vida.
Eis que de repente alguém
bate à porta em alvoroço.
Trazia pelo pescoço a vida que ali faltava.
A pobre vizinha desmaia, a D. Eulália sufoca e o bigode espevita.
Depois de tanto correr
dançam todos numa roda e acordam a sorrir.
III
Sentados na prateleira
dos requerimentos ao céu,
uma enorme trovoada estalou sobre as cabeças.
Um raio caindo na água
da torneira
lança fogo ao vendaval.
Sobem pois todos em fumo
pousando sobre o vitral.
Aí esperam
a vez
de sair em liberdade
e voltar à sensação do picado do jantar.