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A EROS (versão de 1946)
Eros é o Pai, o Adão!
A terra onde começa o paraíso!
O delírio pagão
Pedido pela seiva em seu juízo!
Eros é o sangue, o lume!
O principio da vida!
A impunidade que se ri do gume
Da lança da pureza, erguida!
E cobrem-no de folhas e vergonha!
E apaga-se com medo a sua chama!
Único Deus que sonha
Na nossa própria cama!
Pela primeira vez transcrevo no blog poesia de Miguel Torga (1907-1995). É um poeta mal amado hoje, se é que alguma vez foi um poeta amado.
A produção é irregular e muitos dos versos são duros, à maneira da dureza de um Filinto Elísio, e acusam o esforço de produzir poesia a partir de uma ideia de poema, ao invés de esperar a visita da inspiração.
No entanto, a sua obra contém alguns belos poemas que vale a pena procurar sobretudo nas páginas dos primeiros volumes do Diário ou no conjunto dos Poemas Ibéricos.
Transcrevo agora outra ode, desta vez ao fogo:
AO FOGO (versão de 1946)
Abre o teu riso mais ainda,
Fogo da vida, lume da alegria!
Queima a tristeza toda, finda
À penumbra vazia!
Arde com mais calor em cada hora,
Chama da inspiração!
Sobe da terra ao céu, devora
A lenha que secou de solidão!
Bebe, bebe de um trago
A líquida prudência que te apaga!
Com ágil mão de mago,
Transforma água de poços numa vaga!
Fogueira aberta! Rosa
Nem mística, nem pálida, nem branca!
Deusa que apenas goza
A mortalha que arranca!
Na edição original as odes são constituidas por quartetos de versos que a formatação do wordpress não me permitiu respeitar, prejudicando, com isso a leitura dos poemas.
Estas odes foram publicadas pela primeira vez em ODES, em 1946, edição Coimbra Editora, na 1ªedição do livro. Posteriormente, quando da 3ªedição revista de ODES, o poeta procedeu a substanciais alterações: desapareceu a ODE À NATUREZA, e chegaram de novo uma ode A ORFEU e uma ode À TERRA.
A ode AO FOGO desapareceu, tal como a transcrevi acima e reapareceu um outro poema com o mesmo título, que a seguir transcrevo. Perdeu-se assim aquele belissimo … devora / A lenha que secou de solidão!
AO FOGO (versão de 1956)
Chama da inspiração, que me devoras,
Alarga o teu abraço ao mundo inteiro!
Reduz o pesadelo destas horas
A um braseiro
De amor!
Funde no teu calor
A montanha de gelo e de tristeza
Que nos oprime o corpo e o coração.
E que a grande fogueira da beleza
Seja o sol duma nova redenção!
A ode A EROS teve alteração menos radical, pois apenas foi substituido o segundo quarteto e onde havia:
Eros é o sangue, o lume!
passámos a ter:
Eros é puro amor.
A EROS (versão de 1956)
Eros é o Pai, o Adão!
A terra onde começa o paraíso!
O delírio pagão
Pedido pela seiva em seu juizo!
Eros é puro amor.
O desejo despido
O ímpeto de sangue e de calor
Que resgata o instinto adormecido.
E cobrem-no de folhas e vergonha!
E apaga-se com medo a sua chama!
Único Deus que sonha
Na nossa própria cama!
Estamos pois, de uma edição para outra, perante quatro belissimos poemas sobre as leis da matéria, na linguagem transparente e críptica cara ao poeta.
Termino esta digressão pelas ODES de Miguel Torga com a ode A VÉNUS, que sofreu entre as duas edições que agora comparamos, uma pequena modificação nos versos 16 e 17.
Entremos então neste canto a Vénus, Deusa nua e perfeita / Que incendeias a carne e a ressuscitas,/ … / Quem se pode salvar sem te sentir / Quente e marmórea no seu leito?
A VÉNUS
Deusa nua e perfeita
Que incendeias a carne e a ressuscitas,
Que tornas viva, activa, insatisfeita,
No final da colheita,
A matriz corroída que visitas:
Vem outra vez ao triste acampamento
Destes pobres mortais!
Vem, nesse primaveril deslumbramento,
Trazida pela bruma e pelo vento
Da morada das fontes naturais!
Molhada pelo mar salgado e frio,
Sai da concha e passeia
A regar de frescura, amor e cio,
O deserto vazio
Desta areia!
Porque és tu o mito redentor!
És a flor
Que há-de chegar a fruto!
És a poesia, o sol, o fogo eterno
A aquecer cada inverno
Que fecha o céu da vida no seu luto.
Deusa!
Mulher e aparição num corpo só!
Seios, umbigo, coxas e cabelos
Que são fios abertos de novelos
Onde se aperta a seiva como um nó.
Presença virginal e fecundada,
Quem se pode salvar sem te sentir
Quente e marmórea no seu leito?
Senhora, concubina e namorada,
Ver-te despida é já de si despir
O sarro morto que se tem no peito!
Da penumbra do tempo vem teu nome
Cinzelado na pedra da verdade;
Da raiz desse tempo vem a fome
Dum beijo submisso que nos dome
À sua maternal humanidade.
Lodo e ternura, lume e arte.
Um seio que dê sonho e alimente!
O desejo a buscar-te,
A condição a dar-te,
E toda a lama do prazer ausente!
Na própria chama acesa
Arde a lenha do mal.
Arde, e fica a certeza
Do haloque circunda a realeza
Que toca cada coisa natural.
Vem, grega sabedoria dos sentidos!
Sem pecado e sem vício, mostra erguidos
Os instintos, a forma e a paixão!
Filha de artistas e da natureza,
Só te pede a beleza
Quem a traz a bater no coração!
Os versos 16 e 17 na edição original de 1946 eram:
Porque és tu a terra do renovo!
És o ovo
E concluo com estes versos extraídos da ode À BELEZA:
Um milagre, uma luz, uma harmonia, / Uma linha sem traço… / Mas sem corpo, sem pátria e / em familia, / Tudo repousa em paz no teu regaço!
Acompanha o artigo um desenho de Dubois feito quando da campanha Napoleónica no Egipto e representa o deus MIN, deus pré-dinástico que em tempos primitivos foi conhecido como “Chefe do Paraíso”.
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