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Enquanto a luz de Canaletto / e de Guardi se torna em luz de / Turner,…

Ler estes versos faz-me voar a memória. O Carnaval acabara e raras máscara passeavam ainda a nostálgia de um tempo irremediavelmente sem regresso.

Vinte e cinco anos tinham passado.

Chegados a Santa Luzia e deixado o comboio, lá vamos levados pela multidão e arrastando o trolley pela calçada a caminho da cidade. A paragem do vaporetto fica longe do hotel, é melhor ir a pé.

O cheiro da cidade, o colorido do mar e, sobretudo, a luz, são os mesmos. Os reflexos vindos dos canais, a atmosfera do lugar, tudo permanece igual à memória. Com Veneza as memórias são inevitáveis. E o desejo irreprimível de flanar, olhar o mar, as pessoas, as ruas, descer a S.Marcos ao pôr-do-sol, intacto aí está. A perenidade da paisagem dá-nos o sentido da eternidade.

Mas vamos à cidade. Acabado o Carnaval, turistas são poucos. O sol brilha a espaços, e o frio da laguna desperta todos os sentidos mal pomos pé fora do hotel.

De novo a luz. O deslumbre do olhar é a constante do dia. Ao longo das horas os mesmos locais mudam de atmosfera mantendo sempre o encanto inesquecível. São os jogos de reflexão na água  e a variação da luz nas fachadas e palácios que inebriam e encantam.

Em Veneza passear é ir ao sabor dos cheiros, dos pormenores das esquinas, e perder-se no labirinto de ruelas e pontes. Descobrir a cada passo o detalhe que comove e enche a alma do prazer de ser surpreendida. Depois, há as igrejas, anódinas na fachada e todas, sem excepção, repletas de tesouros no interior, tantos deles por descobrir, afastadas que estão dos guias que fazem correr os turistas. Como valem a descoberta!

Os museus desmancham quaisquer planos e a excitação aumenta com as descobertas. A pintura de Tintoreto, agora restaurada, resplandece na Scuola S. Rocco. Os retratos a pastel de Rosalba Carrera são a revelação. Afinal ainda há pintura a descobrir.

Outro dia é para a Galeria della Academia. Os olhos vêem, mas a mente não retém. É demasiada beleza concentrada. Temos que voltar.

E as pessoas. Os venezianos são poucos. Habitam a cidade, mantêm-na vida. Saturados dos turistas guardam educadamente as distâncias. É preciso tempo em Veneza para que ela e eles se deixem conhecer. Forasteiros são muitos. Alguns ficam presos para sempre. Outros desejam voltar a Veneza e morrer.

Para um melómano o ar de Veneza trás à lembrança Wagner, Stravinski, e sobretudo, Vivaldi de cuja musica, mesmo a religiosa, salta uma irreprimível vontade de viver. É a melhor associação que faço a Veneza.

Para o fotógrafo, Veneza é uma dádiva. As cambiantes da luz com o passar das horas, o inesperado dos pontos de vista e a irresistível paisagem, criam a urgência do regresso quando a partida é inevitável.

Voltar, ter tempo para estar, para olhar, para sentir, para descobrir.

A Veneza podemos voltar, mesmo quando lá fomos felizes. Sempre.

Mesmo quando

Tudo o que tenho por companhia / são as duas metades do meu coração.

Afinal comecei e acabei o texto com versos de um poema de Kenneth Rexroth (1905 – 1982), NUMA PÁGINA DAS “RIME” DE GASPARA STAMPA.

Poeta norte – americano, figura participante do grupo em torno de quem a Beat Generation se desenvolveu, é mal conhecido em Portugal.

É de novo pela mão de Jorge de Sena que nos chegam algumas traduções entre as quais as que aqui transcrevo.

 

NUMA PÁGINA DAS “RIME” DE GASPARA STAMPA

Enquanto a luz de Canaletto

e de Guardi se torna em luz de

Turner, e as cúpulas da Salute

começam a absorver a tarde,

bebo chocolate e Vecchia

Romagna, esse tão estimável

brandy, na esplanada do

Café Internacional,

e leio estas ardentes

páginas que se estorcem. O amor foi

também para ti uma agonia, Signora,

e deu em nada depois

de um preço tão terrível.

Envolto nos sussurros

do fim do dia nesta cidade quieta,

aonde o mais sonoro som humano

é o de passos, estou sozinho

com a minha vida. Na noite passada

tomei uma gôndola até além da Giudecca,

directamente dentro do luar.

Quando voltei os frades

cantavam as matinas em San Giorgio

Maggiore. E penso em se é possível

estar-se mais só do que numa gôndola

em Veneza, à luz da lua cheia

de Junho. Tudo o que tenho por companhia

são as duas metades do meu coração.

Depois do poema-pretexto para voltar a Veneza, mais dois poemas do autor em tradução de Jorge de Sena, acompanhadas dos respectivos originais.

O ABUTRE

São Tomás de Aquino pensava

que a fêmea era lésbica

e o vento a emprenhava.

Se buscas os factos da vida,

os intelectuais papistas

podem ser muito enganadores

Vulture
St. Thomas Aquinas thought
That vultures were lesbians
And fertilized by the wind.
If you seek the facts of life,
Papist intellectuals
Can be very misleading.

O LEÃO

É o chamado rei

dos animais. De hoje em dia

há tantos em jaulas

quantos os há fora delas.

Se te oferecem uma coroa, recusa.

Lion
The lion is called the king
Of beasts. Nowadays there are
Almost as many lions
In cages as out of them.
If offered a crown, refuse.

Saber mais sobre Kenneth Rexroth (1905 – 1982):

Na página http://www.bopsecrets.org/rexroth/ pode ser encontrada informação abundante e fiável sobre este notável autor, tradutor, e cultor de um espírito universalista raro em escritores norte-americanos.

Se do nosso poeta sabemos pouco em Portugal, que dizer da personalidade e da obra de Gaspara Stampa (1523 – 1554)?

Embora para os conhecedores de Rilke não seja um nome desconhecido, pois foi este quem a colocou como emblema dos amantes a quem a infelicidade fez maior que o próprio destino ao referi-la na Primeira Elegia de Duíno, e sobretudo nos Cadernos de Malte Laurids Brigge, onde a compara com Soror Mariana Alcoforado, encontrar a sua poesia traduzida em português é procurar agulha em palheiro.

Vasculhadas as antologias que encontrei à mão é  na insubstituível Rosa do Mundo p.877, que encontro a tradução do Soneto CCVIII de Gaspara Stampa da responsabilidade de Jorge Henrique Bastos:

O amor transformou-me em fogo vivo,

como uma nova salamandra no mundo,

tal como o animal menos raro

que no mesmo sitio nasce e morre.

 

Todo o meu prazer e o deleite

é viver ardendo e não sentir dor,

sem preocupar-me com quem me impele

se tem ou não alguma piedade de mim.

 

Apenas o primeiro ardor estava extinto

foi outro a incendiar o Amor, ainda mais vivo

e maior do que todos os que provei.

 

Não me arrependo de arder de Amor,

se alguém roubar de novo o meu coração

há-de ficar com o meu ardor satisfeito.

 

E a versão original em italiano:

Soneto CCVIII

Amor m’a fatto tal ch’io vivo in foco,

qual nova salamandra al mondo, e quale

l’altro di lei nom men stranio animale,

que vive e spira nel medesmo loco.

 

Le mie delizie son tutte e ‘l mio gioco

viver ardendo e non sentire il male,

e non curar ch’ei che m’induce a tale

abbia di me pietà molto ne poco.

 

A pena era anche estinto il primo ardore,

che accese l’altro Amore, a quel ch’io sento

fin qui per prova, più vivo e maggiore.

 

Ed io d’arder amando non mi pento,

pur che chi m’ha di novo tolto il core

resti de l’arder mio pago e contento.

A obra de Gaspara Stampa, morta aos trinta e um anos, foi publicada pela irmã no ano da sua morte. Consta de 311 sonetos, elegias e madrigais.

Ao que sei, apenas em italiano é possível encontrar em volume a obra completa, disponível em edição de bolso da Rizzoli.

Em francês, a edição de uma antologia bilingue com tradução de Sophie Basch, e uma modelar apresentação pela tradutora, é mais uma das pérolas da colecção Orphée publicada pela editora La Différence.