Conheci-o há talvez quatro, cinco anos. Ao subir a avenida voltei a vê-lo. Anoitecera há muito e as pessoas rareavam. Fechado o comércio, preparava os cartões para a noite gelada que se aproximava.

Sobretudo no Outono, mas também na Primavera, quando o entardecer derrama sobre a cidade uma luz de poesia, saio para fotografar. Deambulo, disparo a maquina fotográfica, e algumas vezes cruzo-me com realidades comoventes.

Certo dia neste deambular, aproximei-me de um jardim da cidade abandonado aos pombos e aos homens sós à espera do fim. De longe avistei o que me pareceu um sem-abrigo sentado, a ler o jornal enquanto o sol o dourava numa aura de irrealidade. Aproximei-me, perguntei-lhe se o podia fotografar. Sem levantar os olhos do jornal, encolheu os ombros num gesto de tanto faz.


Fotografei-o primeiro de longe, e porque qualquer coisa o motivou, pousou o jornal no banco e colocou-se em pose para a fotografia.

Fiz alguns disparos e quis dar-lhe dinheiro. Estendi-lhe uma nota de 10€ que recusou com veemência. Ligeiramente desconcertado perguntei-lhe porque não aceitava o dinheiro.

– É muito, respondeu. Tentei então entregar-lhe uma nota de 5€ e de novo a recusa.

– Mas porquê, homem, porque não quer o dinheiro? perguntei-lhe.

– Notas não. Moedas, 1 euro, senão roubam-me.

Deixei-lhe as moedas que tinha com a promessa de voltar com uma fotografia para lhe dar.

Olhou-me como quem diz: estás a fazer conversa para tolos, e virou-me as costas.

De entre as fotografias que lhe tirei, fiz uma ampliação 10×15 e poucos dias depois procurei-o no jardim. Não estava. De cada vez que voltei a sair levei comigo a foto, e passado algum tempo finalmente encontrei-o no mesmo lugar.

Aproximei-me.

-Lembra-se de mim? Manteve um ar indiferente, e continuei.

– Fiz-lhe há dias umas fotografias e trago-lhe hoje uma. Quer vê-la? E estendi-lha.

 

Pegou-lhe e subitamente os olhos encheram-se de lágrimas.

– Então homem, que é isso? Chora porquê? Perguntei no meu desconcerto.

Chegou-se um pouco para o lado no banco e fez sinal para me sentar ao seu lado.

– Obrigado, disse-me. Foi a coisa melhor que alguma vez me aconteceu.

Olhou a fotografia de novo e guardou-a no interior do casaco junto ao coração.

Comovido e desconcertado, fiquei um bocado à conversa.

A história que me contou não será muito diferente de outras que enchem a cidade.

Primeiro desemprego. Era empregado de mesa. O café fechou para dar lugar a um banco. Já bebia. Vendo-se sem emprego passou a beber mais. Seguiram-se as dificuldades de voltar a encontrar trabalho. A mulher pô-lo fora de casa. Ficou na rua sem ter para onde ir, e na rua foi ficando.

– E tem família em Lisboa? perguntei.

– Lá para Alcantara, mas não os vejo.

Surgiram-me os inevitáveis conselhos de quem no conforto do seu quotidiano não tem a menor ideia do que sente quem foi empurrado para a rua e aí se deixou ficar.

Despedi-me. Quis deixar-lhe algum dinheiro mas recusou com veemência.

Nos anos que entretanto passaram, vejo-o a espaços. Se pressente que me aproximo, afasta-se.

Certo dia consegui aproximar-me e perguntei-lhe:

– Lembra-se de mim? Abanou a cabeça num gesto de confirmação.

– E a fotografia, ainda a tem? Sorriu, levou a mão ao peito e bateu várias vezes abanando a cabeça.

Deixei-o com algumas moedas.

Ontem, quando o voltei a ver, lembrei-me que certa vez coloquei a fotografia que lhe fiz numa galeria on-line, e alguém que a viu comentou:

Parece o Pai Natal!