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A MEMÓRIA É UM NOVELO
Novelo
de pequenas
artérias
rebentadas
por ali
escorre
a memória
a pulsação
que dói
quem não recorda
não vive
não desenrola
o fio
que redime
Regresso ao café da minha infância.
O local é o mesmo, são outros os clientes. Por momentos pensei reencontrar o velho empregado, presença tutelar daquele lugar. Avental branco à cintura, braço levantado onde ao alto equilibrava a bandeja metálica, e súbito, a expectativa de uma semana a materializar-se. Pousava na mesa um enorme prato com bolos e um copo de leite morno. Eram o lanche sonhado dos domingos de chuva. A atmosfera densa do café no azulado do fumo de tabaco e vapor davam um sentido especial ao inverno.
Na pequenez dos meus seis anos, o café tinha a dimensão de uma catedral. Tecto alto, paredes imensas, povoado dos gigantes que eram os adultos e onde, por umas horas, tínhamos permissão de permanecer. Com alguma desilusão constato como essa catedral da minha memória é afinal um pequeno café onde escassas vinte pessoas se acotovelam. A decoração mudou. Da madeira castanho escuro do balcão, mesas e cadeiras, dos assentos em pele verde e da luz difusa, passou agora a uma atmosfera luminosa, madeiras claras e cadeiras de palhinha num ambiente de conforto descontraído, agradável ao adulto que agora sou.
Sentado na esplanada olho as palmeiras no jardim em frente, e lembrando como tinham quase 100 anos quando nasci vejo-as acrescentadas dos cinquenta anos que já vivi.
Voltei ao café da minha infância. As lembranças, os sonhos aqui vividos, a aprendizagem feita entre estas paredes, tudo isso guardo no canto especial das recordações queridas.
Lá fora anoitece e o céu veste-se de um profundo azul ultramarino. Os candeeiros da rua, agora acesos, salpicam o crepúsculo de pequenas luzes douradas numa feérica paisagem de sonho. Chuvisca e a calçada subitamente molhada brilha no fulgor da pedra polida pelos anos. Entre os vultos que passam na pressa do fim do dia, tento descortinar os rostos dos meninos que conheci. Em vão.
Carlos Mendonça Lopes
Ivette K. Centeno recorda no poema TAVIRA I este mesmo jardim frente ao café da minha infância, o lago em volta do coreto onde tantos dias e noites de verão brinquei:
TAVIRA I
Não brincam no jardim
as infâncias perdidas
O lago já secou
nas grades do coreto
enforcaram-se os músicos
E a palmeira
sem tâmaras
marca só o lugar
do tempo que passou.
Deixo-o, leitor, com esta bela interrogação sobre A vida / Diria melhor o tempo?
DEFINIÇÕES
A vida
Diria melhor o tempo?
Mas não
não era o tempo
era a vida
um somatório de tempos
e de espaços
a vida estava agora
de tal modo concentrada
que pouco lhe sobrava
ou mesmo nada
Noticia Bibliográfica: Os poemas foram retirados do livro Entre Silêncios, publicado em 1997 por Pedra Formosa, Edições.
Caro Leitor,
Em breve, não sei ainda quando, sairá a minha novela tavirense: dois velhos encontram-se por acaso numa esplanada frente ao rio Gilão.
É uma novela para os velhos – que se lembram.
E também para os novos – que não se podem lembrar (não eram ainda nascidos! )
Abraço, Y.C.
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Yvette Centeno, minha senhora, em primeiro lugar obrigado. Obrigado por permitir a transcrição dos seus poemas, obrigado pela gentileza dos comentários no artigo. É uma honra ter merecido a sua atenção.
Mantenho um fascínio pela sua poesia na qual encontro uma espécie de essencialidade discursiva, sabendo exactamente o valor e o peso de cada palavra, tão ausente da poesia escrita hoje em Portugal, onde on poetas parecem jamais ter palavras suficientes para se exprimir. Apraz-me sobremaneira a poesia que sabe praticar a arte da síntese como é a sua.
Agrada-me que Tavira tenha sido o pretexto para nos dar a conhecer o livro que vem a caminho. Será pedir muito que nos dê noticia quando estiver nas livrarias?
Mesmo quando não nos pedem, as gerações mais novas estão ávidas de conhecer o passado, que para eles é história e para nós foi vida. Temos para com eles o dever da memória. Quando for registada com o encanto literário da prosa, o relato de memória é duplamente bem vindo.
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É bom recuperar a memória do que se escreveu….deixo esta indicação, já que é Tavirense:
em OUTONAIS, editado on line num site chamado blurb, em 1211, e que deixei livre para poder ser lido na íntegra, encontrará todo um ciclo de Tavira.
E já agora anuncio que estou a rever um próximo romance,em que Tavira faz parte da matéria! abraço cordial, Y.C.
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Gostei imenso destes poemas e prosa. Sou de tavira e vivo na Inglaterra a` 22 anos. Fui empregado de mesa no Bar Esplanada gilao antigo. Primeiro pegado no correto para sul e depois mudou para mais abaixo entre as palmeiras. Fez-me viver e recordar os meus tempos de entao. Tambem escrevo poemas mas tenho mais em Ingles… Muito obrigado pelo momento. Joe (ZE) Soares.
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Obrigado pelo comentário. Somos certamente de gerações diferentes e não creio tê-lo conhecido. Sai de Tavira para a universidade em 1970, aos 17 anos.
Embora o texto se refira ao café Veneza hoje, a memória é traiçoeira, e minha mãe diz-me que o interior descrito era o do café Arcada, vizinho, e desaparecido com a instalação da agência bancaria do BNU, que também já não existe. É o problema das memórias: recorrentemente remeterem-nos para mundos desaparecidos. De todo o modo frequentávamos indistintamente o café Cunha da porta giratória, além destes dois, pelo que nas memórias de infância eles surgem cruzados e acabam com se fundir num único lugar mítico.
As esplanadas que refere são parte de uma memória de adulto nas férias anuais que continuei a fazer em Tavira, e que aqui não pretendo evocar.
O blog está salpicado de referências memorialisticas e fotográficas de Tavira, muitas vezes sem uma explicita identificação. Se navegar por ele certamente as reconhecerá.
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