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No deambular desenfadado com que vou lendo poesia, encontrei este Orlando Innamorato, pérola de ironia saída da inspiração de Ignácio de Abreu e Lima, pseudónimo de António Feijó (1859-1917), onde o poeta dá conta dos seus diversos amores e vicissitudes peculiares.
ORLANDO INNAMORATO
O meu primeiro amor
Chamava-se Maria
Leonor;
O segundo, Sophia
Eulália Pimentel;
O terceiro, que lembro com fervor,
Chamava-se Rachel…
Era um anjo exilado, uma pomba sem fel!
De todas foi a mais amada …
Quando a perdi (levou-a a Morte), oh dor immensa!
Ficou-me a alma encarcerada
Dentro da praça d’Olivença,
Onde Ella tinha o berço e a virginal morada!
Das outras, a primeira, a Maria Leonor
(esta lembrança é um horror!)
Trahiu-me com um primo, um primo d’ella e meu,
Estoira-vergas desvairado,
Só por tocar guitarra e por cantar o fado
Melhor do que eu.
A segunda, Sophia Eulália Pimentel,
Donzella gothica e feudal,
Foi apenas a visão, sonho de Menestrel
Em velha Côrte medieval…
Muitas outras depois, muitas outras mulheres,
Doido romantico, adorei;
Ah! quantas ilusões e quantos malmequeres
Por todas ellas desfolhei!
Mas nenhuma deixou recordação tão doce
Como a linda Rachel…
Ah! se ella viva fôsse,
Quanta impura triaga, quanto fel
Eu teria evitado
Como homem casado!
Mas … lá diz o ditado:
Casamento e mortalha
No céu se talha,
Embora ás vezes o casamento
Seja um tormento,
Que mais parece fogo do Inferno
Que bico de obra das mãos do Eterno…
Foi por essa razão
Que simultaneamente e sucessivamente,
Com o meu coração
Atormentado e doente,
Me consagrei a amar
As mais diversas criaturas,
Mas já sem intenção de me casar:
Alem do mais, por serem duras
As minhas circunstâncias actuaes,
E bicudos os tempos para taes
Cavallarias.
Jamais, depois, tomei mulher senão a dias!
É um deleite a variedade…
Para o provar, meu tio abbade,
Com eloquencia e grande erudição, citava
A resposta que Luis XIV sempre dava
Ao confessor,
Quando este lhe exprobava inconstancias d’amor:
Nem sempre gallinha,
Nem sempre rainha…
Imagina, por isso,
Oh Thomásia! Oh sereia!
Já não digo a paixão, mas o immenso derriço,
Que a ti me prende e enleia,
Vendo que já lá vão três semanas e meia
Desde que estás ao meu serviço!
Conservei a ortografia da 1ª edição do poema.
O poema foi publicado em 1926 no livro NOVAS BAILATAS, livro póstumo tal com SOL DE INVERNO publicado em 1922 e por muitos considerado como a sua obra-prima.
Os poemas reunidos em Bailatas e Novas Bailatas apresentam-se num registo “… misto singular de ironia e de sensibilidade, de graça bufa e de melancolia , às vezes, parecem haver sido escritas por um Pierrot, ao mesmo tempo sentimental e charivárico”, como os caracteriza Luis de Magalhães na notável noticia biobibliográfica com que apresenta SOL DE INVERNO.
É neste SOL DE INVERNO que Alberto d’Oliveira, dedicatário de ORLANDO INNAMORATO, num texto a que chamou “António Feijó, o que morreu de amor”, faz através da correspondência trocada por ambos, uma comovida evocação dos últimos meses da vida do poeta após a morte da esposa.
À época, António Feijó era embaixador de Portugal na Escandinávia e os excertos da correspondência publicados deixam entrever o peso de se ter nascido meridional e poeta: “Do estio setentrional ficou-me apenas a inenarrável melancolia. Não imagina como pesa ao meu espírito esta paisagem, composta monotonamente de lagos, pinheiros e rochedos, sob uma luz pálida, misto de aurora e poente, tão triste, tão triste, que parece a obra de um Deus infeliz.”
É um poeta e escritor brilhante quem assim escreve.
Lida como um todo, a poesia de António Feijó revela, na sua perfeição formal, um exercício de inteligência como poucas vezes encontramos na poesia portuguesa.
E aqui fica a belíssima alegoria à morte do amor com o passar do tempo publicado em SOL DE INVERNO:
O AMOR E O TEMPO
Pela montanha alcantilada
Todos quatro em alegre companhia,
O Amor, o Tempo, a minha Amada
E eu subíamos um dia.
Da minha Amada no gentil semblante
Já se viam indícios de cansaço;
O Amor passava-nos adiante
E o Tempo acelerava o passo.
– «Amor! Amor! mais devagar!
Não corras tanto assim, que tão ligeira
Não pode com certeza caminhar
A minha doce companheira!»
Súbito, o Amor e o Tempo, combinados,
Abrem as asas trémulas ao vento…
– «Por que voais assim tão apressados?
Onde vos dirigis?» – Nesse momento,
Volta-se o Amor e diz com azedume:
– «Tende paciência, amigos meus!
Eu sempre tive este costume
De fugir com o Tempo… Adeus! Adeus!»