Etiquetas
Continuo com a biblioteca em grande parte encaixotada, o que cria as maiores dificuldades em alimentar esta conversa que nos entretém.
Regressado de férias, uma rotura na tubagem de água quente obrigou-me a empacotar à pressa os livros.
Passadas as obras e seus percalços, rearrumar os livros é tarefa de remontar bicicleta depois de desmanchada, sobram sempre peças, ou seja, sobram livros, ou o espaço encolheu.
Empurrados que estavam em várias camadas, tantas vezes arrumados por tamanhos para preencher qualquer espaço vazio, agora, ao retirá-los das caixas deu-me a veleidade de os dispor com critério e acessíveis. Consequência: a menos de metade das caixas esvaziadas tenho as estantes cheias e olho com impotência para as pilhas das que continuam fechadas cada vez que uma dúvida ou a verificação de um detalhe relacionado com o que queria escrever me faz ir à procura de um livro e deparo com aquele branco em colunas do chão ao tecto. A coisa não tem fim fácil à vista, e para alimentar o meu gozo de escrever para o blog e satisfazer a curiosidade dos visitantes, estreito o leque de ideias ao tamanho da informação acessível.
Hoje bem gostaria de envolver As Canções de Bilitis sobre que tenciono debruçar-me, com considerações a propósito de outras obras eróticas de Pierre Louys publicadas em português, mas não me posso fiar na memória para questões factuais, e os livros encontram-se prisioneiros das caixas brancas. Seria uma edição francesa ilustrada de Afrodite e uma recente tradução portuguesa da obra, seria o Manual de Civilidade para Meninas ilustrado de forma saborosa e original por Pedro Proença, seriam dois outros textos eróticos publicados pela Teorema há um ror de anos, de que não me recordo do título em português e eventualmente algum outro que agora à memória não me ocorre.
Temos, pois, que Les Chansons de Bilitis (1894) foram agora publicadas na integra pela Relógio D’Água em edição bilingue com tradução de Maria Gabriela Llansol, e o peregrino título de O Sexo de Ler de Bilitis.
Qual lésbica que timidamente se desnuda, no prefácio a tradutora pretende ensinar-nos a ler o que vem a seguir. No entanto parece ser dela que nos fala e de como o sexo a perturba “mas houve sempre outras – um rosto de que apenas se vê um olhar a olhar-nos no rectrovisor da sua beleza, dedos que seguram uma alça deslizante e que, a deslizar, desnudaria um seio firme de garça inocente, o estádio final das formas opulentas, outrora tão frágeis que nos vergavam ao seu desejo…” nesta deliberadamente hermética prefação com que faz acompanhar a sua excelente tradução.
Apresentados lado a lado o poema original à esquerda e a respectiva tradução à direita, podemos acompanhar e saborear as soluções encontradas e fruir, no enlevo de uma noite, o sabor do sexo de ler.
Começamos por acompanhar Bilitis e encontramos o seu retrato no poema XXXVIII
BILITIS
Uma mulher veste-se de lã branca. Outra
veste-se de seda e ouro. Uma outra cobre-se
de flores, de folhas verdes e de cachos d’uva.
Eu só sei viver nua. Meu amante, toma-me como sou:
sem roupas, jóias ou sandálias. Eis a tua Bilitis toda,
desmunida e só.
Meus cabelos são negros de seu negro, e meus lábios
carmins de seu carmim. Meus caracóis flutuam
à volta de mim, livres e redondos como penas.
Toma-me tal como minha mãe me fez, numa noite
de amor longínqua. E se te agradar como sou,
não te esqueças de mo dizer.
Na criança e adolescente que lemos crescer desde o inicio, encontramos mais tarde a presença do desejo naquele poema XLIV A NOITE
…
... Aurora que despontas, ó nefasta claridade, já estás aí?
Em que covil eternamente nocturno, em que prado subterrâneo,
nos poderemos amar sem fim e perder, enfim,
a memória de que existe lá fora?
Também aqui amar é … perder a memória de que existe lá fora.
Três destes poemas foram musicados por Debussy e são uma obra-prima do reportório clássico. No entanto raramente se ouvem em concerto, o que não é difícil de perceber.
Imagine-se a austeridade de um piano de cauda num palco despojado, uma senhora vestida de gala em pé frente ao piano perante uma plateia as mais das vezes snob e empertigada, a certa altura cantar … entrares em mim como o meu sonho.
Não é qualquer cantora que se atreve, conhecido que é o contexto do desejo manifestado. Daí que quem gosta destas canções fique remetido ao disco onde, diga-se, as interpretação também não abundam.
Levado pela leitura dos poemas fui-me às prateleiras dos discos à procura das canções, sempre uma pequeníssima parte dos programas gravados. Sabia que a minha adorada Cathy Berberian tinha a coragem de incluir nos seus recitais, a maior parte das vezes, estas canções, e na verdade encontrei-as num recital de 1975 e noutro de 1980. Ambos quase sem alterações interpretativas a menos da voz um pouco gasta em 1980. Em pouco mais de 8 minutos são emoção pura concentrada, de resto como tudo o que esta fabulosa voz cantava.
Musa da Beat Genetration e da Pop Art nova-iorquina de finais dos anos 60, foi campeã das vanguardas musicais da época, tanto na musica nova como na musica antiga que então se redescobria com novas e “autenticas” práticas interpretativas, e onde deu voz às heroinas de Monteverdi, então quase desconhecidas e hoje tão familiares.
Ouvi-lhe a voz pela primeira vez na rádio a cantar uma Sequenza de Berio, com quem foi casada, suponho, e que lhe foi dedicada. Tenho hoje ainda presente a estupefacção da minha reacção ao passar ao lado do rádio, ouvir, e ficar parado, de pé, enquanto durou. Regressei aos seus discos agora com o encanto maravilhado de outrora.
Mas voltemos a Bilitis.
Os acontecimentos sucedem-se à medida que avançamos no livro Pouco depois do desejo manifestado acima, temos um encontro de conselhos no poema L:
OS CONSELHOS
Então Syllikmas entrou e, vendo-nos tão à vontade,
sentou-se num banco. Sentou Glótis num dos seus joelhos,
e Kisé, no outro. Disse:
“Chega aqui, pequena.” Mas eu, se longe estava, longe fiquei.
Ela insistiu: “tens medo de nós? Aproxima-te:
estas duas adoram-te. Ensinar-te-ão o que ignoras.
o mel das caricias de uma mulher.
O homem é violento e preguiçoso.
Não é coisa que ignores, certamente. Odeia-o.
Tem o peito achatado, a pele áspera, os cabelos rapados,
os braços peludos. As mulheres, pelo contrário,
são belas dos pés à cabeça.
Só as mulheres sabem amar. Fica connosco,
Bilitis, não te vás embora. E, se tiveres uma alma intensa,
verás, como num espelho, tua beleza projectada
no corpo das que te amarem”.
A aprendizagem da vida pelo sexo prossegue até ao Último epitáfio (poema CLVIII), eu suspendo aqui o passeio.
P.S. Os poemas postos em musica por Debussy foram os nºs XXX, XXXI e XLVI.