Há universos poéticos em que a língua é uma barreira intransponível. E quando nos chegam ecos de que neles se guardam maravilhas, a curiosidade em os conhecer cresce de forma desmedida. Tal é o caso da poesia russa, apenas acessível em português em parcas e poucas vezes notáveis traduções directas do russo. Resta o recurso a uma língua intermédia conhecida.
Sabia da existência de uma compilação de traduções para inglês, de poesia russa, cobrindo três séculos de criação, feitas por Nabokov, acompanhadas das conferências em que o mestre as apresentara. O russo Vladimir Nabokov, é, com o polaco Joseph Conrad, dos poucos casos em que, sendo escritores notáveis, o conseguiram ser noutra língua que não a materna, tornando-se na língua de adopção, cultores e mestres.
O livro de que falo é difícil de obter. Consegui finalmente ter nas mãos um exemplar. Ao olhar é já um belo livro, encadernado em sintético com sóbria e esclarecedora sobre-capa. Apetece ler o que tem dentro. O livro, impresso em papel espesso, mate, cor pérola claro, aparado apenas à cabeça, oferece, em bem proporcionada mancha tipográfica de caracteres facilmente legíveis, um convite à leitura. Vamos a ela, mas vai devagar. Cada frase de Nabokov desencadeia uma floresta de pensamentos: é uma leitura em permanente diálogo connosco.
Para inicio de conversa deixo apenas um curto poema de Nikolay Mihaylovich Karamzin (1766-1826) a que acrescento uma versão para português.
TWO SIMILES
Life? A Romance. By whom? Anonymous.
We spell it out; it makes us laugh and weep,
And then puts us
To sleep.
DOIS SÍMILES
Vida? Um Romance. Por quem? Anónimo.
Lê-mo-lo com dificuldade; faz-nos rir e chorar,
E depois põe-nos
A dormir.
Ia terminar, mas não resisto a esta preciosa reflexão sobre Deus e liberdade de Púshkin ( Aleksandr Sergeevich Púshkin (1799-1837)).
O poema, rebelde a uma versão satisfatória em português, aí fica na versão inglesa de Nabokov.
LITTLE BIRD
In a strange country I religiously observe
my own land’s ancient custom:
I set at liberty a little bird
on the bright holiday of spring.
I have become accessible to consolation:
why should I murmur against God
if even to a single creature
the gift of freedom I could grant!