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Do trabalho notável de Teresa Rita Lopes (1937) de desvendar a poesia de Fernando Pessoa temos nós todos beneficiado: os portugueses e o mundo. Presença frequente no blog por via da obra de Fernando Pessoa, hoje é à sua poesia que vou.
No livro cicatriz respigo:
…
Hoje sei que só se é feliz
quando não se dá por isso
do ciclo de 3 poemas Retratos de Família
e ainda dois poemas:
O primeiro de
Mais dois sonetos breves
I
Há dias em que
toda a maré negra
dos medos da infância
dá à costa
Então é fechar os olhos
e deixar
que a onda alta rebente
e passe
e se canse
de nos fustigar
e nos arremesse
à praia
Exaustos
10/12/1995
Retratos de Família
I
Olha
aqui a avó!
Com o avô
Ao lado a tia o tio a outra
tia
E a mãe a minha
Morreram todos já
Seguro na mão
esse raminho
de rosas-chá
Cheiro-as:
a cada uma
o seu perfume
Apenas isso são
agora
na lembrança
Ressuma nos poemas dos livros que hoje leio: cicatriz e Afectos, de Teresa Rita Lopes, uma memória de lugares, cheiros e coisas que me é cara porque familiar, a par da sensibilidade tocante com que evoca a mãe, a meninice e o intangível que nos envolve, e ao crescermos nos faz.
O Mar da Memória
Acarinho cada vez mais essas palavras
que se dizem ou diziam na minha terra
e as pessoas da minha cidade nem conhecem de nome
Fecho os olhos
abandono-me
deixo-as vir
ao de cima de mim
como uma onda
Dão à costa do fundo do mar da memória
Oiço-as na voz da minha Mãe
Vão-se Esfumando
Vão-se esfumando como retratos velhos
alguns desses amores
que foram parte de mim
e me deixaram decepada
mutilada
quando um dia partiram
Depois o corpo foi-se custosamente habituando
refazendo a sua unidade
Pouco a pouco foram ficando ausentes
inócuos
estrangeiros
Agora já lhes sorrio de leve
Nem já preciso de lhes perdoar
Só tu
Mãe
desde que te foste
és cada vez mais presente
Mais precisa
Mais preciosa
Meu Corpo Teu
Não me ensinaste a envelhecer
Mãe
Nem reparei sequer que envelhecias
Uma vez impacientei-me por não me ouvires bem
e tu disseste simplesmente: “Não vez que a tua Mãe
está a ficar velha?!”
Não via nunca tinha reparado protestei
não aceitei
Só agora compreendo
Agora que envelheces com meu corpo teu
ou que envelheço com teu corpo meu
Habituei-me a ver-te correr ligeira
à frente dos automóveis
a atravessar as ruas fora do risco dos peões
E de repente
sem avisar
a velhice caiu-me em cima
Envelhecias sem reparar
ou não querias pensar nisso
ou não consentias ao corpo esse vagar?
Agora aprendo à minha custa
sem a tua companhia
o que é envelhecer
Se calhar só através desta escrita
me vais ensinando
o que nunca aprendeste
Apascentando os Caracóis da Inês
A Inês chegou feliz ao quintal de Cacela
com dois caracóis que apanhou na horta:
pousou-os na mesa e ficou-se a contemplar.
Eu também.
Mas a primavera lá fora à solta
desencaminhava-a para jogos mais árduos.
Então pediu-me: “Vou ali já volto. Se eles
fugirem chama-me, sim?”
Enquanto apascento
os dois caracóis da minha neta não toco flauta
mas vou escrevinhando estes versos:
Que bom reencontrar a minha velha amiga
mesa
seu velho tampo de madeira
nem sequer polido
acariciar seu áspero
piso
companheiro de tão calados júbilos
em sua madeira nua sem pintura sem
vernizes têm envelhecido os meus versos
que vou guardando nem sei para que brinde
especial
a um futuro dia incógnito
Termino a curta viagem pela singularidade desta poesia com quatro poemas da sequência Adagiário incluídos no livro A Fímbria da Fala:
Adagiando
4
Cortar rente
a planta
e o amor doente
Se seiva houver
hão-de brotar
outros e os mesmos
Adagiando
5
Sofrer
o prazer
como se fosse
eterno
viver
o sofrer
como se fosse
breve
Adagiando
23
A cada dor seu grito
a cada amor sua ferida
a cada nossa idade
um jeito de sofrer
e de amar
A cada fome seu fruto
a cada fruto seu grumo
e seu sumo
a cada desejo
seu fundo
e fino gume
Adagiando
24
Tudo o que
existe
rima
com triste
Tudo o que
é vida
rima
com ferida
Tudo o que
foi
rima
com dói
Chegado ao fim destes três livros de poesia saio deles com uma sensação de alma lavada pela sinceridade da escrita, como depois de um filme de John Ford, daqueles onde pressentimos ter captado a vida no seu mosaico de alegrias, desgostos, e coisas simples que lhe dão sentido:
Crepúsculo de Setembro em Cacela
Um ar tão doce como se
estivesse dizendo o último
adeus a alguém
E para coda uma reflexão essencial sobre como amar alguém:
Perder alguém
Cuidado!
Parar
escutar
olhar
longamente
o ser
amado
Tão fácil
perder
alguém
pela algibeira
rota
da nossa
desatenção
in A Fímbria da Fala
Nota bibliográfica
Teresa Rita Lopes, cicatriz, Editorial Presença, Lisboa, 1996.
Teresa Rita Lopes, Afectos, Editorial Presença, Lisboa, 2000.
Teresa Rita Lopes, A Fímbria da Fala, Prefácio de António Ramos Rosa, Desenhos de Mário Botas, Editora Ausência, Porto, 2002.
Abre o artigo a imagem de um desenho de Mário Botas (1952-1983), a qual ilustra a capa do livro Fímbria da Fala na edição acima registada.