Mesmo vivendo na cidade, basta um jardim frente às janelas para, ao rodar das estações e dos anos, irmos ganhando um conhecimento quase intimo das cambiantes de luz e cor na paisagem à medida que árvores e vegetação se despem e vestem de folhagem e flores no seguro e previsível avanço dos dias.
Vivendo no campo, essa aprendizagem será, porventura mais variada, mas a nossa atenção e gosto acaba por se afeiçoar a determinado pormenor do horizonte onde a natureza se sucede de forma mais tocante ou espectacular.
Se hoje em dia a tentação imediata é fixar por fotografia esses lugares em momentos especiais, quando se pinta, o trabalho é mais lento e conduz a um mais subtil e intimo registo do que se vê.
Dá conta desta experiência a obra de Cézanne (1839-1906) na sua recorrente pintura do Mont Sainte-Victoire (Monte de Santa Vitoria), horizonte que ele teve durante anos como cenário, quando saía para pintar nos arredores de Aix-en-Provence, onde vivia.
É sabido como Cézanne na sua pintura procurou, e conseguiu, dar a noção da perspectiva no motivo pintado usando apenas a cor. Na pintura da paisagem interessava-lhe captar as formas e o equilíbrio pictórico entre as grandes massas que definiam a vista observada, em detrimento de fixar as cambiantes que a luz nessa paisagem introduzia, como era propósito de Monet e dos impressionistas.
É assim que no vasto conjunto de pinturas com o Mont Sainte-Victoire em fundo podemos seguir um verdadeiro curso de pintura na tentativa e busca de conseguir registar a profundidade da paisagem com a justaposição das cores que encaminham o olhar do perto ao longe, e regresso. E com este passeio do olhar comovermo-nos com aquele não-sei-quê que a arte acrescenta à vida.
Em A Secreta Vida das Imagens Al Berto (1948-1997) recria, em bela poesia, esta ligação de Cézanne ao lugar, vivida longos anos até à morte.
Sainte-Victoire depois da morte de Cézanne
no mais remoto isolamento da memória
guardei preciosamente a sombra dos basaltos
luminosos xistos frestas de granito janelas
perto de sainte-victoire mais cinzenta que nunca
pintava sem cessar pintava
desde o alvorecer até que a noite descia
obrigando a mão e o pensamento a desfalecer
trabalhei sempre a obsessiva luz
mas a velhiçe aprisionou-me na vertigem
muito longe na idade
continuei a pintar sur motif
parecia-me fazer lentos progressos
quase compreendi os sobrepostos planos
de um mesmo objecto sob a claridade d’aix
foi em 1906
montado num burro carregado com material
ia por onde o cortante mistral passara
deixando a descoberto o implacável sol
modulava terras pinhais nuvens casas corpos
mas a morte não consentiu que eu executasse
as vislumbradas geométricas paisagens e
comigo se perdeu o segredo dessa pirâmide
que é sainte-victoire vibrando
na cegante luminosidade do meio-dia.
Depois do pequeno grupo de pinturas inicial, termino com algumas outras do final da vida do pintor, de entre as dezenas de pinturas conhecidas com o Mont Sainte-Victoire como assunto.