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É curta a obra poética (1953-1993) de Luís Pignatelli (1935-1993) tal como reunida na edição &etc publicada em 1999, preparada e anotada por Zetho Cunha Gonçalves.

Além das experiências poéticas acompanhando diferentes movimentos de vanguarda do século XX, quando o poeta recorre a formas tradicionais de expressão, a obra revela uma poesia de desolada serenidade, agarrada aos detalhes do quotidiano. É das questões da existência que nos fala: do amor, da morte e da enorme aventura de estar vivo.

Tratando-se da poesia de um artista multifacetado, cuja variada obra está por descobrir, a escolha dos poemas a seguir transcritos não é, sequer, representativa da diversidade da sua obra conhecida.
Talvez quem me lê conheça a canção cantada por José Afonso, Era de noite e levaram. O poema é de Luís Pignatelli, ainda que surja no disco Contos Velhos Rumos Novos atribuído a L. Andrade, uma das muitas assinaturas do poeta. Ou o poema Cantiga de Amigo, tornado canção famosa por Adriano Correia de Oliveira, ao tempo do marcelismo, e mais tarde cantado também por Vitorino, afinal poemas que muitos conhecem por memória, sem fazer a ligação a outros trabalhos do poeta.

Despeço-me com uma escolha de três poemas:

 

 

ars amatoria *

Pela sombra desatado
pela lua desperto
está na cama teu corpo
assim exposto:
se a minha mão o toca
um veio de água aberto
irrompe de tua boca
morre em meu rosto

Lentamente morre
à flor da carne desejada
para logo renascer
em fresco voo repetido
para logo repousar
ave ferida
na rama bem amada
de meu corpo apetecido

Um ao outro apetecendo
como neve derretida
na cintura
desta liana quebrada
onde a selva mais escura
do teu corpo vai morrendo
em meu corpo
incendiada

 

* este poema, com alterações mínimas mas significativas, repete um outro poema do livro, os amantes, cantado e gravado por Janita Salomé.

 

 

no verão a rosarosa

langue a língua fone
funil de sombra
na tua boca áspera à espera
da gota gótica levedando leve
a neve
     cúpula de cópula
      árida areia raia
      marinha morta sobre
o peito salobre da praia paina
      de vento no cristal
      de letra cintilante:

      rosaurata

      rosasáurio

      rosaurífera

      rosafera

      em letra viva

na esfera da tua boca furna de prata
onde morre o verão de língua cortada
      íngua rebentando
      na luz de agosto

      ROSAROSAROSAROSA

 

sonetilho para uma adolescente **

Que vento norte
Na manhã do mar
Sopra teus seios
De flores de morte

Que nuvem arde
Sobre o teu corpo
Teu corpo aberto
À tempestade

Que vaga lua
Virá de noite
Doce tanagra

Pôr-te mais nua
Que a nua praia
Doce e amarga

** poema cantado e gravado por Vitorino

 

Poemas transcritos de Luís Pignatelli, Obra Poética 1953-1993, organização, prefácio e notas de Zetho Cunha Gonçalves, &etc, Lisboa, 1999.
A edição, modelar como habitual nas edições &etc, inclui além de desenhos de outros, alguns saborosos desenhos do poeta, um dos quais abre o artigo.