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Dar em palavras a medida do sentimento, seja ele felicidade, alegria, tristeza ou desespero, é esse o génio de Luís de Camões (1524-1580) na sua faceta mais cativante: a lírica, fazendo uso das formas poéticas em uso no tempo. E uma vez mais, na única sextina que escreveu, encontramos a fluência da expressão amorosa sem que nos apercebamos imediatamente do espartilho das exigências estróficas e de rima que a construção de uma sextina reclama.

 

Numa sextina, poema com seis estrofes de seis versos cada e um terceto final, são seis as palavras que constituem as rimas ao longo dos seis sextetos do poema. Na composição de Camões são elas: vida, vivo, olhos, falo, passo, pena, as quais devem surgir uma a uma no final de cada verso de uma estrofe de seis versos. Estas palavras, sempre as mesmas, surgem nas estrofes seguintes em ordem diferente da primeira estrofe. No terceto final estas seis palavras são repetidas duas a duas em cada verso, uma a meio, outra no final do verso.

 

Construir um poema comovente em que o leitor caminha sem dar conta desta estrutura cerrada, é a proeza de Camões nesta obra singular:


Morrendo estou na vida, e em morte vivo;
Vejo sem olhos, e sem língua falo;
E juntamente passo glória e pena.

 

É um desgosto mortal, e um desgosto de amor, o relatado por Camões neste poema, ao ponto de lhe parecer a existência sem qualquer sentido:

Que mais me monta ser morto que vivo?
Pera que choro, enfim? Pera que falo,
Se lograr-me não pude de meus olhos?

Sabemos a seguir que tanto desgosto decorre de não poder ver a quem ama:


Ó fermosos gentis e claros olhos,
Cuja ausência me move a tanta pena

 

E é no choro que o apaixonado, confrontado com a ausência da amada, algum consolo encontra:


Mas, sobre a maior dor que sofro e passo
Me temperam as lágrimas dos olhos;
Com que, fugindo, não se acaba a vida.

 

 

SEXTINA

Foge-me, pouco a pouco, a curta vida,
Se por acaso é verdade que inda vivo;
Vai-se-me o breve tempo de entre os olhos;
Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Se me passam os dias passo a passo.
Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.

Que maneira tão áspera de pena!
Pois nunca uma hora viu tão longa vida
Em que posso do mal mover-se um passo.
Que mais me monta ser morto que vivo?
Pera que choro, enfim? Pera que falo,
Se lograr-me não pude de meus olhos?

Ó fermosos gentis e claros olhos,
Cuja ausência me move a tanta pena
Quanta se não compreende enquanto falo!
Se, no fim de tão longa e curta vida,
De vós me inda inflamasse o raio vivo,
Por bem teria tudo quanto passo.

Mas bem sei que primeiro o extremo passo
Me há-de vir a cerrar os tristes olhos,
Que amor me mostre aqueles por que vivo.
Testemunhas serão a tinta e pena
Que escreverão de tão molesta vida
O menos que passei, e o mais que falo.

Oh! que não sei que escrevo, nem que falo!
Que se de um pensamento noutro passo,
Vejo tão triste género de vida
Que, se lhe não valerem tanto os olhos,
Não posso imaginar qual seja a pena
Que traslade esta pena com que vivo.

Na alma tenho contino um fogo vivo,
Que, se não respirasse no que falo,
Estaria já feita cinza a pena;
Mas, sobre a maior dor que sofro e passo
Me temperam as lágrimas dos olhos;
Com que, fugindo, não se acaba a vida.

Morrendo estou na vida, e em morte vivo;
Vejo sem olhos, e sem língua falo;
E juntamente passo glória e pena.

Luís de Camões, Lírica Completa, edição de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1980.

 

 

Abre o artigo a imagem de um pormenor de um fresco de Bronzino (1503-1572) no Palazzo Vechio de Florença.