Há semanas distraí os leitores das graves preocupações da actualidade com o relato do prazer de rever velhos filmes em ambiente de beira-mar [Cinema e Paraíso]. Reincido hoje, pois estas noites de cinema e beira-mar são prazer que recomendo a quem o possa fruir.

Ainda que a indústria cinematográfica continue a produzir filmes apetecíveis, cuja novidade nos chama, revisitar histórias intemporais onde a memória se aninha e o prazer da repetição se saboreia, tem o apelo, por vezes irresistível, do reencontro entre velhos amigos.
Se a produção mais recente vi, a disponibilidade de espírito para voltar a velhos amores fez-me rever algumas pérolas de que deixo notícia.

Hesitei sobre continuar com mestre Hitchcock mais uns dias e voltar a ver de novo Grace Kelly e o seu assédio sexual a um James Stewart de perna engessada e completamente incapacitado para as peripécias de amor,  assunto principal de Rear Window (Janela Indiscreta), com pretexto (MacGuffin) de assassínio no prédio em frente; ou então, a agitada perseguição em North by Northwest (Intriga Internacional) onde Cary Grant faz o perfeito cidadão comum apanhado no local errado à hora errada, por uma intriga de espionagem magistralmente encenada por um James Mason no seu melhor, e onde  inúmeras cenas e falas fazem parte inesquecível da minha memória cinéfila.

Não me tinha ainda decidido e lembrei-me de uma pérola cinematográfica (Hopscotch) com um portentoso argumento de paródia aos filmes de espionagem, e uma esfuziante interpretação de Walter Matthau, secundado pela requintada e shakespeariana arte de representar de Glenda Jackson.
Para quem nunca viu o filme, (e não consta das listas de filmes que toda a gente deve ver uma vez na vida), traço um quadro simplificado do argumento: Um velho e experiente agente da CIA, na sequência de uma operação de intercepção de informações a passar para os Russos, deliberadamente deixa escapar o Chefe do KGB que superintendia a operação. Chamado à sede, é repreendido e colocado à secretária. Em sequência resolve demitir-se e prepara uma vingança antes de desaparecer da circulação. A partir daqui sucedem-se os acontecimentos hilariantes e paródias às histórias do género espionagem. O filme ganha um ritmo alucinante sempre à beira do nonsense, mantendo contudo a verosimilhança nas peripécias. Não detalho mais o argumento para não estragar a surpresa a quem se decida a vê-lo uma primeira vez.

Depois desta desopilante comédia apeteceu-me algo mais tranquilo. A arte de representar de Glenda Jackson chamava-me para Shakespeare. Pensei em Much ado about nothing, (Muito barulho para nada), feito e representado pelo jovem casal Kenneth Branagh/Emma Thompson, rodeado de um elenco estelar, que à época era apenas promessa (Denzel Whashinton, Keanu Reaves, etc). Vi-o, e por ali deslizaram os encantos da sedução e o sabor ambígua das palavras que tapam/revelam desejos e intenções, numa superlativa arte de representar.

De comédia em comédia, foi a vez do parceiro de Walter Matthau em tantas hilariantes histórias, Jack Lemmon, mas desta vez no inenarrável travesti de Some like it hot (Quanto mais quente melhor) e do seu magistral jogo de enganos até à frase final: Nobody is perfect.
No filme guarda-se uma das cenas mais espantosas do cinema, quando de costas, Marilyn Monroe avança pelo autocarro da banda musical feminina, balançando ancas e nádegas envolvidas na curva de um vestido justo. São segundos do mais absoluto erotismo, retomados por momentos por Fellini no filme Amarcord, quando a Gradisca avança, vestido vermelho, entre os montes de neve dum branco imaculado, seguida pelos olhos ávidos dos adolescentes.
Para fim da semana cinematográfica apetecia-me rever Katherine Hepburn.
Suddenly last summer (Bruscamente no verão passado) era uma possibilidade, com a adicional presença preciosa da beleza irreal de Elizabeth Taylor quando jovem. A densidade da história não casava com o meu ânimo e virei-me para coisa mais ligeira. O vendaval de comédia que é Bringing up Baby foi a primeira ideia, história de nonsense batida apenas por Arsenic and Old Lace, com o mesmo Cary Grant, mas na anterior com o adicional de a fechar se ver a hilariante prestação de Cary Grant naquela rendada camisa de noite. Mas era sobretudo a gama alargada da capacidade de representar da Hepburn que me apetecia. E assim, combinando-a com o registo de comédia  vi The Philadelphia Story, (Casamento Escandaloso) com o retrato inesquecível da jovem independente e frontal, segura de si, e a quem uma bebedeira suave liberta o lado frágil nos braços de um compreensivo James Stewart. Sublime!
E assim fechei a semana com chave de ouro.

É claro que cada um destes filmes tem muitíssimo mais para contar que os detalhes pontuais que destaquei, e para mim foram a razão primeira de os rever.  Todos eles objecto de repetidos ensaios e exegese ao longo dos anos que levam de vida, serão sempre uma companhia segura para nos fazer felizes.

Ao chegar das noites mais frescas de Setembro, que este ano tardam, quando o conforto de um pulôver apetece, talvez venha a oportunidade para voltar a ver algo do tanto que agora ficou de fora.

Carlos Mendonça Lopes